Para fugir de ansiedade e frustrações com pandemia, estudante viaja de bike e faz trabalho voluntário pelo Brasil afora
Nicolly Prado, de 21 anos, não tinha experiência alguma com bicicletas e atividades físicas, mas ao lado de um amigo, viajou 300 km em cerca de duas semanas. Há mais de um mês fora de casa, ela viaja por meio da plataforma Workaway, que permite trocar serviços voluntários por hospedagem e alimentação

Era a manhã de 1º de outubro, uma quinta-feira ensolarada, quando Nicolly Prado pegou um ônibus de Brasília para Belo Horizonte. Ao lado de seu amigo Victor, ela levava apenas algumas mudas de roupa, sua bicicleta, ferramentas, uma barraca de acampamento, colchonete, e um notebook para acompanhar as aulas de sua faculdade. Também levou bagageiros (alforges) que montou sozinha com latões recicláveis e ferro.
Sem frescuras, e sem temer o que poderia acontecer, a jovem de 21 anos tinha como objetivo inicial chegar de bicicleta a um morro de Delfim Moreira –município de Minas Gerais–, onde se hospedaria em um sítio rural em troca de trabalhos voluntários, com intermédio da plataforma Workaway. Mas para chegar lá, Nicolly ainda enfrentaria duas semanas de muita estrada, rodovia, mato, calor, chuva, ladeiras, e até mesmo uma tempestade de granizo.
Impulsiva, ela nunca teve o costume de andar de bicicleta, e muito menos de fazer exercício físico. Mesmo assim, Nicolly já andou mais de 300 km da Estrada Real, com aproximadamente 1.630 km de extensão. Mas por que uma estudante de Letras, de 21 anos, com pouca experiência em trilhas e ciclismo, e que passou os últimos anos de sua vida morando em cidade grande, faria isso?
Tudo começou em agosto, quando Nicolly voltou de um intercâmbio que fez em Seul, capital da Coreia do Sul. Durante os seis meses que passou lá, poucos foram os momentos em que precisou ficar em isolamento social por causa da pandemia do coronavírus. Isso porque até hoje, a cidade só registrou cerca de 5 mil casos e 57 mortes pela doença. Mas ao voltar para Brasília, onde mora desde os 15 anos, se deparou com uma cidade que registrava mais de 50 mil casos e mil mortes pela Covid-19. A cada dia, esses números aumentavam, assim como a ansiedade de Nicolly. Afinal, o que ela tem de aventureira e extrovertida, também tem de ansiosa e agitada, e por isso, não aguentava mais contar os segundos para sair de casa.
Sem poder encontrar os amigos que não via desde fevereiro, ir a festas ou dançar o forró que tanto ama, Nicolly se sentiu perdida. Ela sentia falta até de andar nos ônibus lotados e quentes da capital. “Na Coreia, eu estava exercitando isso de não pensar muito no futuro, coisa que sempre fiz. Só quando cheguei aqui que comecei a pensar no que eu faria no isolamento, mas eu já sabia que não aguentaria ficar em casa”, diz a jovem. “Eu me despedi dos meus amigos antes de ir para a Coreia, então quando voltei só queria reencontrar as pessoas. Até hoje, não pude ver nenhum deles”.
No início, Nicolly tentou passar um tempo em Joviânia, município do interior de Goiás onde nasceu e passou a maior parte de sua vida. Mas não deu certo, já que lá também não podia sair muito porque se hospedou na casa de sua avó, que faz parte de grupos de risco. “Não conseguia fazer nada, e só ficava mais ansiosa em casa. Tentei arrumar trabalho em Brasília, mas não deu”, conta Nicolly.
Então, uma semana antes de sair para sua viagem na estrada, comprou uma bicicleta com ajuda dos pais, montou bagageiros improvisados com ajuda de tutoriais no YouTube, e começou a procurar um lugar para ficar, por meio dos sites Workaway e Worldpackers. Ambos são plataformas colaborativas que te conectam com anfitriões do mundo inteiro. Dessa forma, é possível viajar trocando suas habilidades por hospedagem. Hoje, existem mais de 50 mil projetos do tipo em andamento em mais de 174 países, por meio do Workaway. Já no site Worldpackers, existem pelo menos 1.072 anfitriões apenas no Brasil.
“O Workaway e Worldpackers são visionários, porque é bom para todo mundo, tanto para o anfitrião quanto para o hóspede. Eles não têm uma visão muito capitalista, e qualquer pessoa pode participar disso, porque eles pensam que todo mundo está ali para aprender”, explica Nicolly. “Então, se você não sabe fazer nada, você vai chegar no lugar e aprender a fazer alguma coisa”.

Nicolly e Victor em uma de suas paradas, em uma cachoeira, a caminho de Delfim Moreira | Foto: Arquivo Pessoal
Dificuldades e aprendizados
Nicolly quase desistiu da aventura algumas vezes. Logo nos primeiros dias pedalando na estrada, a caminho de Delfim Moreira, ela e Victor precisaram dormir na reserva de um parque privado. Mais cedo, pedalaram 7 km de subida, em um calor de 37º graus, em uma estrada sem qualquer acostamento. “No primeiro dia já deu tudo errado. A perna estava doendo muito, o desgaste mental já era grande… Descobri que ciclista é tratado que nem lixo no Brasil, porque não existe ciclovia em nenhum lugar. Tive que subir em barrancos enormes porque não existia acostamento em algumas rodovias”, conta a jovem. “Teve um dia que choveu granizo na gente no meio do nada, chegou até a sangrar”.
Ela não sabia que precisaria andar tanto. Mas apesar dessas dificuldades, diz que faria tudo de novo, e se possível, sozinha. “Não é fácil realmente conviver com um monte de gente o tempo todo em uma casa que você não conhece, que não é sua, fazer projetos que você nunca fez. Antes disso, eu só sabia estudar, fazer artigo, era minha única habilidade específica”, afirma. Em alguns dias, Nicolly chegou a assistir aulas no meio da estrada de terra, no mato, em rodovias e postos de gasolina.
Mesmo assim, ela se considera privilegiada, porque, por morar com os pais e ter juntado dinheiro antes, pôde levar uma quantia emergencial para a viagem sem data para terminar. “Mas gastei muito pouco até agora. No primeiro mês viajando, não passou de R$ 500. O ecoturismo é muito bom porque você economiza demais, ainda mais usando o Workaway, porque não pago hospedagem. Os principais gastos são com alimentação mesmo”, conta.

“Aprendi também que você precisa de muito pouco para as coisas derem certo”, diz Nicolly | Foto: Arquivo Pessoal
Para Nicolly, todos os altos e baixos até chegar no interior rural de Delfim Moreira valeram a pena por alguns motivos simples: as pessoas que conheceu no caminho, as novas habilidades que ganhou, e os aprendizados que vai levar para a vida. Ela salvou o contato de todos que a abrigaram na estrada, como uma senhora que encontrou ela e Victor dormindo no cemitério e os convidou para passar alguns dias em sua casa, e depois desses dias, os convidou para o natal. “Talvez a gente realmente venha passar o natal com ela, porque nos demos bem demais”, afirma a estudante. Nicolly também se deparou com um pesquisador de abelhas que mora em Paraty (RJ), e que ofereceu abrigo para eles na região. Até hoje essas pessoas mandam mensagens para ela pedindo atualizações sobre a viagem.
“Fizemos amizade com muitos outros no meio do caminho, conhecemos muitas histórias incríveis, e quase todas as pessoas que começaram a puxar papo com a gente. Algumas vezes, a gente mesmo chegava e perguntava se poderíamos armar a barraca no quintal da pessoa, e depois de alguns minutos de conversa, quando viam que não éramos nenhuma ameaça, deixavam. Essa é uma coisa que não aconteceria se você fosse de carro ou de moto, você não pararia no caminho para conhecer pessoas novas”, explica a jovem. “E fizemos amizade com pessoas que nunca achei que teria alguma coisa a ver comigo. E foram tão receptivos que temos o plano de fazer o mesmo caminho de novo, para encontrá-los novamente”.
No lugar em que estava hospedada em Delfim Moreira até o último dia 28 de outubro, Nicolly aprendeu jardinagem, paisagismo, pintura e até a fazer bonecas de pano. “Aqui a gente também limpa a casa, cuido dos animais todos os dias, e da horta também”, conta. “Cada um que se inscreve no Workaway também tem que trazer um projeto pessoal para o lugar em que você vai se hospedar, um projeto para deixar para aquele lugar. Eu escolhi cuidar das redes sociais, editar vídeos para eles e fazer artesanatos recicláveis para a lojinha”.

Nicolly e Victor com as anfitriãs que os receberam no caminho para Delfim Moreira | Foto: Arquivo Pessoal
Além dessas novas habilidades, Nicolly também aprendeu muitas lições que vai levar para a vida. “Passei a ficar muito mais feliz por coisas muito pequenas. Por exemplo, depois de pedalar umas 7 horas por dia, quando chegava o almoço e eu podia sentar na estrada pra comer, aquilo era o auge da felicidade”, explica. “Aprendi também que você precisa de muito pouco para as coisas darem certo. E eu sou uma pessoa muito consumista, não queria viver com pouco, mas vi que não preciso de uma comida tão elaborada, por exemplo, ou de um quarto enorme, ou um carro”.
Mas o melhor benefício para ela, de longe, foi a melhora na ansiedade e desgaste mental que sentia antes de embarcar em sua bicicleta. “Melhorou demais, não sinto mais tanta necessidade de planejamento. Não tomo mais os remédios que tomava. E desde que eu me entendo por gente, eu tomo antidepressivo. Mas foi um processo gradual para tirar tudo”, conta Nicolly.





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