Transição capilar: desconstrução do próprio cabelo
A pandemia foi uma grande aliada para a aceitação do cabelo natural de algumas mulheres
Postado em 13/09/2021
Recentemente foi noticiado o caso de uma menina de 9 anos submetida a uma escova progressiva, método que tem a intenção de alisar o cabelo, mas que não foi autorizada pelo pai da criança. Dado a uma forte alergia, a garota precisou raspar o cabelo e passar por cirurgia para reverter os efeitos que a química causou em seu corpo.
O processo de alisamento de cabelos de meninas jovens é muito mais comum do que se imagina. Diante do estigma social de que cabelo enrolado ou crespo é “ruim”, diversas mulheres enfrentam longas horas em salões de beleza para conseguir, de alguma forma, se livrar de suas ondas e cachos.
A estudante de 21 anos, Mariana Gomes, conta que começou a fazer química no cabelo aos 5 anos de idade. “Minha mãe ia trabalhar de manhã e só voltava de noite, então quem ficava comigo era a babá ou parentes. Com isso fui bastante machucada por ter um cabelo muito cacheado e volumoso. As pessoas não sabiam como cuidar, nem pentear”. Ela completou que começar o alisamento foi a solução encontrada pela sua mãe, para assim, facilitar a rotina da filha e de quem cuidava dela.
A história também se repetiu na vida da estudante Amanda Zadorosny. “Desde meus 11 anos de idade minha avó me levava no salão para fazer escova e, por volta dos 15 anos, comecei a passar alisante com formol no meu cabelo todo”.
A cabeleireira Fátima da Silva afirma ter começado a transição capilar por estar cansada de alisar o cabelo e porque não sentia que conhecia mais sua identidade. “Isso afetava minha autoestima, só usava cabelo que não era meu, vivia de aplique”. Fátima destaca que alisava desde nova e o cabelo seu couro cabeludo era ferido por conta das químicas e processos.
Um movimento que ganhou forças e visibilidade por mulheres e famosas, como as cantoras Iza e Ludmilla, é a transição capilar, que como explica o cabeleireiro auxiliar, Westrei Siqueira, é “um processo em que você deixa a química de alisamento para ter um cabelo natural”.
O profissional ainda aponta que o processo é longo, então há necessidade de encontrar inspirações e aceitação para ter uma transição mais tranquila, já que a pessoa pode precisar conviver com a coexistência de duas ou mais texturas capilares, até que não tenha mais nenhum produto alisante no comprimento dos fios.
Autoconhecimento dos cachos durante a pandemia
Lorraine Oliveira, recepcionista de um salão especializado em cabelos crespos e cacheados, localizado no Gama, destaca que houve um aumento de 50% na procura para iniciar o tratamento da transição capilar. A profissional ainda estima que esta demanda esteja associada ao isolamento social, pois assim as pessoas se sentiram mais à vontade para passar pelo processo.
Este fato foi confirmado pelas duas estudantes, que tiveram como impulso a pandemia para começar a transição capilar. Mariana ressalta: “a quarentena me ajudou muito, com os salões fechados e sem sair de casa, tive liberdade para ter um cabelo considerado ‘feio’ para muitos”. Amanda completa: “a pandemia, de fato foi um divisor de águas pra mim, comecei a aceitar minhas variadas versões de cabelo”.
Uma grande queixa das pessoas que passam pela transição é a questão da autoestima e insegurança durante o processo. Amanda conta que enfrentou seus medos e dúvidas sobre os novos cuidados que seu cabelo precisa. “Tinha muitos medos, hoje nem tanto, ainda apanho muito com meu cabelo, de como usá-lo e cuidá-lo, mas sigo em um processo de amor e ódio com ele”.
Fátima conta que sua transição foi complicada, já que se importava bastante com a opinião das pessoas. Mas, no momento que se aceitou, sente que a transição foi a escolha certa, principalmente por conta da praticidade. “Agora que meu cabelo está natural, basta eu lavar e ter os cuidados necessários”. A cabeleireira disse que veio a conhecer seu próprio cabelo aos 35 anos, época que começou a transição.
Com a Mariana não foi diferente: “por muito tempo, o meu cabelo liso era minha certeza de aceitação em alguns lugares. Desconstruir isso dentro de mim foi muito difícil, ver duas texturas no meu cabelo e pensar que não vai passar abalou muito minha autoestima”.