O futebol fora das quatro linhas: a formação de um técnico
Em entrevista, educador físico Caio Pustiglione conta como se prepara na Europa para ser um treinador
Postado em 28/05/2024
“Quem não sonhou em ser jogador de futebol?” A famosa letra da música “É uma partida de futebol”, da banda mineira Skank, faz referência à paixão nacional. Aos seis anos de idade, Caio Pustiglione, paulista de Pirassununga, também alimentava o sonho de ser jogador, mas percebeu, com o passar dos anos, não ter talento e tempo suficiente para investir na carreira. Apaixonado por esportes, resolveu então fazer uma graduação de educação física. No curso, enxergou uma forma de trabalhar com futebol: como treinador.
“Eu poderia focar na preparação física. Mas queria ter um impacto maior e sinto que a função de treinador é a mais importante em um time”, explica.
Foram anos juntando dinheiro e esperando a oportunidade para ingressar no curso de treinadores profissionais da União das Federações Europeias de Futebol (UEFA), gestora do futebol europeu. Até que no ano passado pode enfim iniciar um novo capítulo da vida, em Portugal.
Confira a entrevista completa com o educador físico; hoje, com 25 anos.
Como funciona o curso que você está fazendo?
Trata-se de um curso licenciado pela UEFA para formação de treinadores profissionais. Ele é dividido em licença C,B, A e Pro, sendo que você tem que fazer todos os processos se quiser treinar times de nível profissional. Atualmente, estou cursando o UEFA C em Aveiro, Portugal, que traz a licença C, relacionado ao futebol de base iniciante (futebol de 7 e futebol de 9). Geralmente são dois, três anos para tirar cada licença, porque é um ano de aulas teóricas e um ano de estágio. É um processo que acaba sendo um pouco demorado, a parte teórica dele acabou faz duas semanas. Não é fácil, demanda dinheiro e tempo, mas ainda assim é bem proveitoso.
Como foi sua adaptação em um país diferente?
Caio e sua namorada, Duda, que o apóia-se bastante, mesmo de longe. Reprodução: Instagram @pustiglionecaio
Eu cheguei em Aveiro em novembro do ano passado e fiquei lá até março deste ano, com a minha namorada. Optamos por morar juntos porque aproveitei a oportunidade que ela tinha ido para Aveiro antes de mim para fazer uma parte do mestrado em química. Infelizmente, minha adaptação na cidade foi complicada, pois não consegui nenhuma oportunidade de trabalho. Porém, pelo custo de vida não ser tão caro aqui, consegui dar um jeito de me sustentar até que surgiu uma oportunidade em Algarve, Portimão, com animação em um hotel. Recebo um salário mínimo, mas já ajuda a me firmar financeiramente aqui na cidade. Além disso, está aparecendo oportunidades para eu virar personal e isso iria fazer com que eu ganhasse um pouco mais de dinheiro. Mas a principal dificuldade que tenho todo dia é a saudade, estou sozinho longe de casa e longe agora da minha namorada, que teve que voltar ao Brasil para completar o seu mestrado. Tem dias que tenho vontade de jogar tudo para o alto, desistir e voltar para o Brasil, mas o meu sonho acaba falando mais alto. Guardo tudo o que estou sentindo e penso que estou aqui para o motivo, que é o meu sonho de seguir minha carreira.
O que aprendeu até agora?
Eu aprendi muita parte teórica, técnica e tática para ensino de futebol de base. Essa parte do curso da UFAC é voltada para o esporte na fase de iniciação, então a gente trabalhou até com a equipe Sub-13, o que nos levou aprender a lidar com esquemas para o jogo de futebol de 5, futebol de 7 e futebol de 9. Nesse ensino, aprendemos muitos exercícios com ou sem a bola e saber também como lidar com crianças; tivemos inclusive aula de psicologia e nutrição infantil para saber como desenvolver melhor as habilidades delas.
Como é o ensino no curso?
As aulas são bem conciliadas entre teóricas e práticas, onde o ensino é passado primeiro dentro da sala de aula, trazendo toda parte teórica, e depois levávamos todo aprendizado para dentro de campo para entender como funcionava na prática. A gente já teve aula de treinamento de goleiro, onde aprendemos a montar um treino para um goleiro, coisa que eu não sabia; tivemos aula prática também de desenvolvimento de exercícios de habilidades específicas, como drible, chute, dentre outros atributos do futebol. Uma aula que me chamou atenção foi quando tivemos que desenvolver dois sistemas de jogo, um para o futebol de cinco e outro para o futebol de sete. Essa aula foi gravada por drone e após a parte prática feita, tivemos uma aula teórica só para analisar os vídeos e fazer a correção de posicionamento e de outras situações. Tudo isso para melhorar nossa visão sobre o jogo e fazer com que a gente possa repassar para as crianças e melhorar o desenvolvimento delas.
Campo de treinamento visto por um drone, uma simulação de como a imagem do treino era repassado na aula do curso. Créditos: Pexels
Uma curiosidade é que acabo tendo um pouco de dificuldade com a língua, mesmo sendo o português. Em questão de termos e em língua falada é muito diferente do Brasil e isso também acaba sendo um ponto que dificulta um pouco nas aulas.
E o que tem te surpreendido mais até agora?
Eu acredito que seja a maneira de como os europeus olham para o futebol, que por mais que no Brasil a gente goste muito do esporte, nós não temos o olhar de maneira clínica que eles possuem. O que eles estão habituados a enxergar, é algo que conhecemos como engessado. No curso não aprendemos, por exemplo, as formações de sistema de jogo porque não é mais usado hoje em dia. Claro que ainda há definição tática no começo, só que dificilmente durante a partida o treinador e as pessoas que analisam o futebol europeu enxergam essa formação. O que é utilizado atualmente são as transições ofensivas e defensivas.Tendo como base esse estilo de jogo, aprendemos a fazer táticas e combinações com um máximo de jogadores por posição, simulando situações reais de jogo e seguindo a ideologia do futebol em quadrantes. Nele, há a definição do quadrante ofensivo e o quadrante defensivo, ambos com oito áreas determinadas e vai ser a partir disso que teremos a visão de jogo de quais áreas a bola está mais presente; quais áreas geralmente têm dois, três ou mais jogadores dentro; se tem superioridade defensiva ou ofensiva em determinado lugar. É esse olhar que foi o que mais me surpreendeu, pois eu não tinha essa visão toda.
Há um estágio dentro do curso?
Sim, só que para você fazer algum estágio basta que algum professor tenha a licença que você está tirando, porque ele assina suas horas. Então você pode ter tanto contato com pessoas e buscar seu próprio estágio ou fazer aqueles que o próprio curso oferece. Surgiu uma oportunidade de estágio no clube onde usávamos as instalações para o curso, o Recreio Desportivo de Águeda. Então acaba que tem muita oferta e muitos clubes querem estagiários trabalhando com eles, porque se torna uma forma de conseguir uma mão de obra barata, basicamente de graça na verdade, e também porque eles aproveitaram o desenvolvimento dessa pessoa para ter acesso dentro do clube depois.
Você teve alguma oferta de trabalho fora essa do clube Águeda?
Essa última semana eu tive conversas com o Vitória de Guimarães, um time tradicional da série A daqui de Portugal, para desenvolver um projeto com o futebol feminino do clube. Estou no aguardo e esperando algumas coisas que serão definidas, ainda não é nada muito certo de que vou assumir alguma coisa lá, mas se essa oportunidade se concretizar, vai ser o começo da minha trajetória no futebol e um começo muito promissor por ser um clube de estrutura fenomenal aqui de Portugal.
Se aparecesse alguma oportunidade no Brasil, você aceitaria?
Para eu treinar algum time no Brasil, eu tenho que primeiro chegar na licença PRO ou fazer o curso que a própria Confederação Brasileira de Futebol oferece (CBF), que tem o mesmo intuito. Eu poderia até ter feito a escolha de começar essa minha carreira no Brasil, mas optei pela preferência de fazer o curso fora do país pelo nome que a UEFA traz. Acaba sendo um peso muito grande para o currículo, além de ter aula nos grandes centros formadores de treinadores do futebol mundial. Ainda é um sonho distante se levar em consideração que tenho que tirar ainda quatro licenças, ou seja, fazendo os cálculos, somente daqui oito a dez anos que irei me formar. Muita coisa pode acontecer até lá então vai depender das propostas que forem aparecendo no caminho. Se aparecer algum clube daqui de Portugal, por exemplo, tende a ser mais vantajoso financeiramente e em questão de vida. Mas ainda sim tenho um sonho de treinar um time brasileiro algum dia, seja ele meu time ou algum time de grande relevância porque eu amo o futebol brasileiro, por mais que seja um pouco desorganizado e tenha seus problemas. Ele tem suas peculiaridades, e ganhar uma Libertadores ou algum título nacional deve ser algo surreal.
Por fim, você acredita que com todos esses cursos disponíveis, mais brasileiros podem ser influenciados a também seguirem o sonho de trabalhar fora das quatro linhas?
No Brasil, a adesão dos cursos da CBF está sendo cada vez maior, e até mesmo aqui nos cursos da UEFA temos muitos brasileiros buscando essa formação. Na minha turma, por exemplo, são 60 alunos e oito são brasileiros. Então eu vejo que a vontade de trabalhar existe, o grande porém agora é que as pessoas que querem trabalhar fora das quatro linhas busquem o conhecimento. Por mais que a cultura popular diga que é muito fácil ser treinador hoje, vemos que não é bem assim, e vemos no Brasil cada vez menos treinadores brasileiros competentes e realizando bons trabalhos.