Conheça o artista de Ceilândia que busca resgatar a história da cidade

Em suas obras, Gu explora o direito à cidade, o direito à informação e a mobilidade urbana 

Larissa Barros

Postado em 21/06/2024

As raízes de Gustavo Santos vieram do Maranhão, com pais nordestinos, mas hoje, o que faz vibrar o coração de Gu, o Gu da Cei, é o resgate da história de Ceilândia. Em suas obras, Gustavo aborda temas importantes como o direito à cidade, o direito à informação e a mobilidade urbana.

Gu ganhou o Prince Claus Seed Awards 2023 e o Prêmio de Arte Contemporânea Transborda Brasília, projeto realizado por Virginia Manfrinato e financiado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal. Além de integrar a coordenação do festival Foto de Quebrada, alguns dos seus trabalhos podem ser conferidos no livro “O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e o Direito à Informação”. 

Confira a entrevista completa com o artista: 

Qual a importância da história de Ceilândia no seu trabalho e como você busca retratar essa história através da arte?

A história de Ceilândia é muito importante para o meu trabalho porque é ela que orienta muito da minha poética. Eu trago a cidade também no meu nome por entender que ela influencia a minha expressão, a minha vivência e todo o meu trabalho artístico. E a história de Ceilândia foi muito importante para o meu trabalho porque ela me trouxe uma consciência maior sobre as problemáticas que envolvem o direito à cidade, o próprio direito à história e me trouxe esse desejo de propor contra-narrativas ou até uma revisão histórica mesmo, tentando evidenciar a complexidade da dinâmica geográfica do Distrito Federal. Pois, muitas vezes quando a gente pensa em DF, a história que vem na mente das pessoas é a história de Brasília, da Esplanada dos Ministérios, de Oscar Niemeyer, que acaba ocultando muito das outras regiões, das outras cidades. Ceilândia já é a cidade mais populosa do DF, só que mesmo assim a gente ainda é carente de muitos espaços culturais, de muitos direitos e ofertas de serviços públicos. Aqui no Jovem Expressão, por exemplo, a gente tem a Galeria Risofloras, que é a primeira e única, até então, galeria de arte contemporânea de Ceilândia, que evidencia que os espaços de artes visuais estão centralizados no Plano Piloto. E a cidade mais populosa tem uma galeria, que é uma ocupação, que já foi até ameaçada de retirada, mas estamos aqui promovendo a arte e acreditando muito nisso.

Como você lida com a discriminação e marginalização de Ceilândia em suas obras artísticas?

A forma que eu vejo de combater essa marginalização ou esses estereótipos que se criam em torno de Ceilândia é tentando minimamente apresentar a diversidade de expressões que tem aqui. Por isso, também, eu trago a cidade no meu nome, trazendo mais o elemento dessa diversidade de expressões. É Ceilândia, de referência, ali no movimento hip hop nacional, no cinema, né? E, através das artes visuais, eu gosto também de evidenciar um pouco dessa riqueza que é a nossa cidade.

Você menciona a relação dialógica entre processos históricos e contemporâneos da fotografia. Como isso se manifesta em suas obras?

Esse processo de pesquisa com a fotografia começou com um projeto chamado Da Quebrada, que era a ideia de resgatar esses processos históricos e químicos de revelação fotográfica, no caso a cianotipia. A partir disso, eu fui ao encontro de diferentes artistas aqui de Ceilândia, entrevistei-os, perguntando sobre como Ceilândia influenciava suas expressões, numa tentativa de evidenciar como a cidade impulsiona a arte desses artistas. Então, eu fotografei esses artistas, revelei o conhecimento do cianótipo, escaneei as impressões e transformei em lambe-lambes, que eu saí colando pela cidade, com o nome desses artistas e a foto. Essa ideia de promover a arte daqui de Ceilândia acabou virando um documentário experimental. Por isso, esse processo é histórico e contemporâneo, pois partiu desse processo de revelação química, mas também virou intervenções urbanas e outros tipos de expressões, promovendo a imagem desses artistas e, de certa forma, a própria arte da Ceilândia. Depois disso, eu comecei a trabalhar com a ideia da fotografia expandida, como um projeto artístico que parte da fotografia, vai para outras linguagens fotográficas, mas não se limita à fotografia, como foi também o projeto Face Recognition do sistema de biometria facial dos ônibus, que eram fotografias, dados biométricos que eu me apropriei, tirados por essas câmeras de vigilância e que eu expandi para intervenções urbanas, para performance, para vídeo e outras linguagens.

Quais são suas principais críticas e reflexões sobre vigilância em relação ao espaço urbano?

A minha principal crítica em relação à vigilância é o desrespeito à autonomia das pessoas, ao direito à imagem e ao direito à privacidade. Por exemplo, tecnologias de reconhecimento facial, que já foram proibidas na União Europeia e em algumas cidades dos Estados Unidos, como São Francisco, onde nasceram as grandes empresas de tecnologia. Essas tecnologias são reconhecidamente racistas e transfóbicas, com erros que podem afetar a vida das pessoas drasticamente, como já aconteceu várias prisões injustas. Além disso, essas tecnologias foram instaladas sem discussão pública e sem consentimento da sociedade, como no caso do DF, onde foi utilizado para justificar um aumento de passagem. Essas tecnologias de vigilância também limitam a liberdade de expressão, liberdade de trânsito e de ocupação da cidade. A ideia de vigilância muitas vezes é associada a uma ideia de segurança, mas nem todo ambiente vigiado é seguro. A tecnologia por si só não inibe a violência ou as coisas que acontecem. Além disso, a ideia do tecnosolucionismo, que a tecnologia resolveria todos os problemas da sociedade, é errada. A tecnologia por si só não resolve os problemas. A vigilância associada à mobilidade urbana pode ser uma barreira de acesso à cidade. O transporte coletivo é um direito, e a vigilância associada a ele pode ser uma barreira para as pessoas transitarem e ocuparem a cidade.

Como a mistura de arte de rua com inteligência artificial contribui para a narrativa das suas obras?

Bom, hoje eu não sou um artista que está produzindo com inteligência artificial, gerando imagens ou produzindo outras coisas, como outros artistas. Porém, utilizo a inteligência artificial e acabo compondo com ela a partir dessa apropriação dos dados que ela produz.

No caso, por exemplo, desse projeto com imagens do sistema de biometria facial, são sistemas que se utilizam de inteligência artificial para fazer o reconhecimento facial ou identificação facial. E aí eu me aproprio desses dados e começo a compor com eles de forma a fazer uma crítica à vigilância ou à forma como essa tecnologia ou inteligência artificial está sendo utilizada.

Como você enxerga a evolução da arte urbana em Brasília e qual o papel da Ceilândia nesse cenário? 

Bom, eu acho que Ceilândia, por ser um berço do hip hop, onde o grafite é um dos elementos, tem uma contribuição muito grande. Porque daqui saem grandes artistas, grandes grafiteiros que estão ocupando a cidade como um todo. E eu vejo que a cena daqui do DF, da arte urbana, é muito rica e que cada vez mais está crescendo com essa integração de diferentes linguagens. Não está só ficando na parede, está ocupando também um espaço tridimensional na rua, também está sendo performance, teatro, música e tudo conectado e misturado ao mesmo tempo. Então, vejo que é muito grande, que é muito potente e cada vez está ficando maior a parte dessa integração entre as linguagens.

Como a sua arte contribui para a discussão sobre direito à comunicação e à informação?

Bom, eu acredito que contribui a partir dessa ideia de provocar as pessoas a irem atrás das suas próprias informações, dos próprios dados que elas produzem. E na ideia de comunicação, muito se baseia nessa ideia de que nós também temos vozes e podemos compartilhar as nossas vozes e mensagens, seja através da arte ou seja através da comunicação. Acho que é muito nesse lugar de provocar e trazer essa reflexão de que nós também podemos ser agentes de informação, podemos também estar produzindo e compartilhando informações para além dos veículos tradicionais.

Quais são os maiores desafios que você encontra ao discutir e expor temas como direito à cidade e transporte coletivo através da arte?

Eu acho que os maiores desafios é criar essa conscientização de que a gente está falando de direitos, que são nossos. E que a garantia deles é benéfica para toda a sociedade. Você ter um transporte como direito, como eu disse, gratuito, tarifa zero, é um direito, uma coisa que vai trazer benefício para toda a sociedade. E eu acho que é muitas vezes criar essa conscientização nas pessoas, de que o transporte não é mercadoria, de que a cidade é uma cidade melhor pra todo mundo quando ela tem mais urbanidade, que é essa qualidade da cidade, de promover o encontro entre pessoas diferentes, de ter esses espaços mais de encontros, de lazer, de cultura.

Que projetos futuros você tem em mente para continuar expandindo o nome da Ceilândia nas suas principais temáticas?

Eu tenho muitos projetos em mente, mas quero principalmente fazer mais coisas trazendo a figura da caixa d’água de Ceilândia, esse monumento como personagem. Além disso, estou num processo de pré-produção de uma vídeo instalação, que vai ser essa experiência audiovisual imersiva, que também vai ser um filme, mas que o produto final é uma vídeo instalação, que é essa experiência imersiva. Nessa instalação, vão ter várias reflexões sobre essa ideia do direito à cidade, sobre a história de Ceilândia, sobre a minha própria história, sobre migração, vigilância e todas essas outras temáticas que eu estou trabalhando.