Do trabalho ao desencanto

Por Ana Paula, Fernanda Rodrigues e Joana Lacerda Quase duas horas de espera, sem saber se conseguirá pegar o ônibus para ir trabalhar. Incerteza se chegará bem em casa, depois de um dia intenso de demandas em outra cidade. O medo de ser roubado, ou sofrer assédio, perpetua a luta dos moradores de Águas Lindas […]

Reportagem especial

Postado em 17/07/2023

Por Ana Paula, Fernanda Rodrigues e Joana Lacerda

Quase duas horas de espera, sem saber se conseguirá pegar o ônibus para ir trabalhar. Incerteza se chegará bem em casa, depois de um dia intenso de demandas em outra cidade. O medo de ser roubado, ou sofrer assédio, perpetua a luta dos moradores de Águas Lindas ao esperar o ônibus, que, muitas vezes, é o único meio de transporte acessível.

Os moradores reclamam das paradas de ônibus, que muitas vezes são desertas e amedrontadoras. “É um tanto quanto complicado, pois, por ser mulher, acabo me tornando uma vítima fácil aos olhos de cidadãos indesejados”, desabafa Júlia Fernandes, 21 anos. A estudante Jennifer Tavares, 22 anos, relata que nem sempre se sente protegida. “Dependendo do horário, se a parada estiver vazia, não me sinto segura”, conta.

Stefany Cristina, engenheira, 24 anos, relata que sempre opta por se vestir de forma mais desleixada, pois tem medo de ser importunada enquanto está no ônibus. “Me sinto mal, pois sou uma mulher bastante vaidosa, porém, quando me arrumo um pouco mais, os olhares me constrangem, acho que falta segurança para nós do sexo feminino.” Uma pesquisa realizada em 2022 pelo Instituto Patrícia Galvão, mostrou que a cada quatro mulheres no Brasil, uma já passou por importunação ou assédio sexual dentro do transporte público. Somada a isso, a engenheira retrata ainda que as paradas não têm boa iluminação, além de exalarem odores fortes e desagradáveis.

Por falar em mau cheiro, além da parada, os ônibus também pecam na falta de higiene. Júlia diz que raramente encontra ônibus com uma higienização plausível. “Já utilizei ônibus que estavam sujos com restos de comidas, embalagens de doces entre os bancos, chicletes mascados e colados nas corrediças das janelas e, infelizmente, ônibus sujos de vômito.” Ela complementa dizendo que não há como culpar 100% a empresa, pois algumas pessoas não contribuem com a limpeza. Alice Gomes, 20 anos, estudante, relata que chegou a passar mal devido ao mau cheiro que exalava em um ônibus que tem como rota Águas Lindas, voltando da faculdade.

Uma outra reclamação muito aparente dos passageiros é o excesso de pessoas dentro do ônibus. Alice Gomes diz que, por ter poucos ônibus à disposição, a condução é extremamente desconfortável. “Eu nunca consegui ir sentada, pois há muitas pessoas pegando o ônibus junto comigo.”  Ela completa com uma queixa de cansaço após o dia cheio de trabalho. “Poxa, a gente trabalha, ainda por cima estudamos, eu fico extremamente cansada no final do dia, e ainda tenho que passar duas horas em pé dentro de um ônibus lotado.”

Os moradores de Águas Lindas que precisam passar horas dentro de um ônibus para conseguir chegar ao Distrito Federal esperam encontrar ao menos um transporte de boa qualidade, seguro e confortável. Stefany Cristina ressalta que “enquanto não houver aumento dos ônibus que circulam em Brasília, vamos continuar na mesma. É muito desgastante”.

Tarifas altas para uma qualidade inferior

Os moradores de Águas Lindas que precisam utilizar o transporte público todos os dias reclamam da qualidade dos ônibus, pois não é um serviço gratuito. Em março de 2023, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) divulgou um reajuste de 12% nas passagens de ônibus nos municípios do entorno do Distrito Federal. A tarifa de Águas Lindas para o Plano Piloto custava R$ 7,80. Atualmente, os passageiros devem desembolsar R$8,65.

Uma pessoa que, de segunda a sexta-feira, vai para a capital, gasta R$ 43,25 durante a semana para receber um serviço que, por vezes, deixa a desejar, como os entrevistados relatam. Jennifer Tavares, estudante, aponta que o valor não condiz com o que é oferecido à população. “Está sempre lotado, sempre mesmo, não importa o horário”, desabafa. Para o designer Henrique Rodrigues, o aumento da tarifa não faz jus ao transporte que é disponibilizado. “Se o aumento do valor tivesse ocorrido para trazer mais qualidade aos ônibus, eu compreenderia. Mas por quê esse reajuste se o serviço continua o mesmo? Nos deixando na mão quando precisamos?”, questiona. 

Após o governo do Distrito Federal assumir a gestão e fiscalização do transporte rodoviário de 11 cidades do Entorno que vão diretamente para a capital, a Secretaria de Transporte e Mobilidade (Semob) se tornou responsável por cerca de 400 linhas de ônibus, que saem do entorno fazendo linha com Brasília. Todos os dias, aproximadamente 175 mil passageiros utilizam essas linhas. De acordo com a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios de 2021 (PDAD/2021), coordenada pela Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan), a renda domiciliar mensal no DF, em média, chega a R$ 6.938,40. Em contrapartida, a Pesquisa Metropolitana por Amostra de Domicílios 2019/2020 (PMAD) constatou que a Periferia Metropolitana de Brasília, que agrega 12 municípios do Goiás que são vinculados diretamente ao Distrito Federal, a renda é de R$ 2.551,89.

Para Vinícius Martins, formado em tecnologia da informação, o gasto semanal com as passagens de ônibus toma parte do seu salário. “É uma gasto que não posso tirar do meu orçamento, pois, diariamente, preciso utilizar R$ 18,00 para conseguir chegar à Brasília e voltar para Águas Lindas. Isso sem contar com o ônibus circular que preciso pegar próximo a minha casa, para conseguir ir até o ônibus que vai para o Plano Piloto”, explica. Vinícius relata que o valor não é adequado para o que o transporte entrega. “Se eu perco um ônibus, preciso esperar por mais de 40 minutos para pegar o próximo. Às vezes ele quebra, ou está muito cheio, então preciso esperar o próximo”, finaliza. 

O designer Henrique espera que haja uma melhora nos serviços prestados para a população do Entorno do DF. “São muitas promessas ao longo desses anos, espero que realmente cumpram e nos entregue um transporte de qualidade e segurança. Não é nada agradável passar horas do seu dia, diariamente, dentro de um ônibus que não tem um mínimo de conforto para os passageiros”, finaliza.

Entramos em contato com a Secretaria de Transporte e Mobilidade do Distrito Federal para saber o motivo do reajuste nas passagens, mas, até a publicação desta reportagem, não tivemos resposta.

Quem não tem carro, vai de transporte público

Uma das reclamações mais recorrentes dos moradores que entrevistamos é sobre a falta de ônibus disponível. Um dos motivos que levam esse acontecimento é o grande volume de pessoas tendo que se deslocar de Águas Lindas até o Plano Piloto. A engenheira Stefany Cristina, relata que o mercado de trabalho acontece majoritariamente em Brasília. “Se eu tivesse condições de ter um carro, seria menos estressante do que pegar um ônibus lotado todos os dias. Mas além do percurso ser longo, o salário que recebemos é pouco. Tá difícil!”, desabafa.

Alice Gomes, estudante, 20 anos, diz o mesmo. “Eu estudo e trabalho no Plano Piloto, e moro em Águas Lindas. É muito cansativo, e acredito que, mesmo de carro, seria igualmente cansativo”. Vinícius Martins, formado em tecnologia da informação, relata que essa rotina exaustiva de trabalho não é novidade na sua geração. “A maioria da minha família vive como eu, minha mãe pega esse ônibus lotado desde que ela tinha 14 anos. Fico muito triste por isso.”

O pesquisador em mobilidade urbana, Carlos Penna Brescianini diz que a melhor solução para a ligação de Águas Lindas com o Distrito Federal é a integração da cidade ao projeto do Trem do Entorno. “No caso de Águas Lindas, basicamente, basta seguir o metrô que vai até a Ceilândia e prosseguir em direção a Águas Lindas. Você trazer as pessoas de metrô, de uma distância tão grande para Brasília em um meio de transporte eficiente, com qualidade e velocidade, é seguramente a melhor solução. Não existe outra solução. Não é duplicando via, ou colocando concreto na EPTG ou na estrutural. Metrô ou trem sempre vai ser a melhor solução”. Não há, no momento, nenhuma linha de metrô que siga para o entorno.

O entrevistado deu sua opinião sobre o investimento em asfalto e concreto nas rodovias. “A Estrutural foi planejada nos anos setenta, logo depois da crise do petróleo, como uma via expressa feita para os ônibus elétricos circularem, saindo da Ceilândia e Taguatinga até o Plano Piloto. A ideia do ônibus elétrico terminou sendo abortada, mas a Estrutural ficou, e foi ocupada por veículos normalmente. Hoje, ela está tendo as obras para poder trocar o asfalto por concreto”.

O pesquisador completa dizendo que as empreiteiras adoram essa ideia pois ganharão muito dinheiro, porém, em relação a qualidade do transporte público, não muda nada. “Se você está vindo de Ceilândia e Taguatinga, rodando sobre concreto ou asfalto, não faz a menor diferença. Agora, faria a diferença se o dinheiro fosse utilizado para poder investir em metrô.”

Segundo dados da Codeplan, quanto ao local de trabalho, observa-se que 14,10% da população total trabalha em Águas Lindas (29.149 pessoas), correspondendo a 38,58% da população ocupada. A maioria da população da região, 43.886 pessoas (58,09%), trabalha no DF, com a expressiva concentração no Plano Piloto, com 24,38% (18.420 pessoas). Em segundo lugar, aparece a RA de Taguatinga com 7.110 pessoas, correspondendo a 9,41% da população ocupada. Declararam trabalhar em outros municípios da Periferia Metropolitana de Brasília apenas 583 pessoas (0,77%).

A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) lançou, no dia 3 de março deste ano, o Plano de Recuperação do Semiurbano GO/DF, que objetiva garantir a continuidade e melhoria do serviço de transporte rodoviário semiurbano de passageiros entre o Distrito Federal e Goiás. O lançamento ocorreu depois da publicação, Deliberação nº 35/2023, que atestou a extinção do Convênio de Delegação nº 1/2020, no qual o Governo do Distrito Federal (GDF) havia assumido a gestão dos serviços operados na Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal (RIDE/DF). A norma determinou que a Superintendência de Fiscalização de Serviços de Transporte Rodoviário de Cargas e Passageiros (Sufis/ANTT) retome as fiscalizações da prestação do serviço.

Com o retorno da gestão do transporte do entorno do DF para a ANTT, a Agência construiu um plano de recuperação com cinco medidas: Intensificação da fiscalização da ANTT, consórcio, atualização das tarifas, diálogo com os moradores, e um canal exclusivo de Ouvidoria. Além disso, a ANTT criou um canal exclusivo em sua Ouvidoria para receber, esclarecer e resolver os questionamentos dos usuários: ouvidoriasemiurbano@antt.gov.br.