Cartazes que gritam no trânsito: um retrato da fome da pobreza no Distrito Federal

Um pedaço de papelão, uma caneta e alguns quilômetros andados por dia entre os carros nos semáforos do DF é a saída para muitos que estão em situação de vulnerabilidade, desempregados e com fome. Quem são os brasilienses que usam cartazes para pedir ajuda no trânsito do Distrito Federal e o que faz o governo diante dessa realidade?

Reportagem especial

Postado em 30/06/2022

por: Ana Vitória Rafalovik, Isadora Mota e Vitória Alice Silva

As mãos que seguram os cartazes

O quadro de desemprego, a fome, a vulnerabilidade e a falta de oportunidades assola milhares de famílias brasileiras. O levantamento realizado pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revelou que há, em 2022, pelo menos 11 milhões de trabalhadores desempregados em todo o Brasil.

Em busca de algum amparo e uma renda, muitos são encontrados nos mais diversos semáforos espalhados pela capital do país. Em suas mãos, cartazes em letras garrafais expondo palavras que clamam por alguma ajuda. Morador do entorno do Distrito Federal, Carlos Eduardo de Sousa, 56 anos, de domingo a domingo levanta cedo da cama para conseguir a sua renda vendendo água no semáforo próximo ao Teatro Nacional. 

Ex-trabalhador de construção civil, Carlos relata estar desempregado há 10 anos. “Estou doente e não posso mais trabalhar com construção, então tenho que vir para cá”, afirma. Seu Carlos fica diariamente, até as 18:30, segurando a placa entre um sinal vermelho e outro, e conta que a ajuda que recebe dos motoristas que passam por ali é o suficiente apenas para pagar algumas contas em casa e a passagem da locomoção. Fora isso, ele não recebe nenhum auxílio ou incentivo do governo. “Já busquei amparo do governo, mas não adiantou. Então, para não morrer de fome, venho para cá. Se não, morro em casa”.

A história do pernambucano José Admilson, 52 anos, não é muito diferente da de Carlos. Há 9 anos, José deixou sua família em Pernambuco e veio para Brasília tentar uma nova vida. Ao chegar, conseguiu trabalho em uma obra no entorno, mas o serviço durou pouco e há seis anos o ambulante tenta ganhar a vida nos semáforos do Plano Piloto. 

Contudo, no caso de José o que dificultou mais a sua vida, além da falta de oportunidade no mercado de trabalho, foi que há pouco tempo ele teve todos os seus documentos roubados. “Não tem como eu trabalhar sem a minha identidade, então tive que apelar aqui nos semáforos”, alega.

De acordo com o economista Riezo Almeida, o cenário de desigualdade e desemprego afeta todo o DF, já que o dinheiro precisa circular nas mãos das pessoas, com elas consumindo produtos e serviços para a economia girar. De acordo com ele, o sistema econômico de Brasília paira em torno da prestação de serviços, onde também há uma empregabilidade significativa, “mas por conta da inflação, preço da gasolina, a guerra, os preços dos produtos e serviços aumentaram ainda mais. Apesar da demanda, as pessoas estão tentando não gastar tanto”. 

A insegurança alimentar também é uma realidade em 21% das residências do DF, de acordo com levantamento do PDAD (Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios), divulgado pela Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan) neste ano. O nutricionista Lucas Victor Araújo avalia: “Acredito que estamos voltando a viver um período de insegurança alimentar. Que seriam pessoas que até têm a oferta de comida mas não são alimentos de boas fontes nutricionais, como alimentos industrializados. São comidas muito calóricas, mas não contêm valores nutricionais, não tem nada ali que será aproveitado pelo corpo além das calorias”. 

O nutricionista discorre sobre os programas de atenção alimentar do governo, que, para ele, são insuficientes para suprir as dificuldades que existem para acabar com a fome no DF. Lucas Victor faz ressalva positiva para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) e a Política Nacional de Alimentação e Nutrição (Pnan) que são voltados para a alimentação escolar. “Eles [os programas] até ajudam na inflação pois o governo dá incentivo à agricultura familiar e ajudam na economia local.”

Se para adultos, como José e Carlos, já é difícil enfrentar a batalha nas ruas em busca de uma renda para sustentar a casa, a luta fica ainda mais complicada para o adolescente de 14 anos Josué Kalebe, que está desde os 8 anos pedindo dinheiro nos semáforos.

O morador do Paranoá destaca que frequenta a escola no período da manhã e durante a tarde segue até os semáforos do Plano Piloto em busca de doações para ajudar sua mãe em casa, que está desempregada e, para conseguir um sustento, vende açaí na Rodoviária do Plano Piloto. Mesmo que seja um ato condenado pela justiça, um estudo do IBGE indicou que mais de um milhão de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos estavam submetidos a alguma forma de trabalho infantil, em 2019, no Brasil.  

Em uma conjuntura de falta de investimento na educação, Riezo ressalta que “a parte social e a educação estão muito próximas. A falta de capacitação no curto a médio prazo vai resultar em índices negativos para a educação e pobreza. Não é isso que a gente espera, mas infelizmente estamos caminhando  para esses índices ruins, que são fundamentais para conseguirmos avançar”.

O retrato da fome 

Em sua graciosa e planejada arquitetura, a capital do Brasil, com apenas 62 anos de existência, já carrega a notável marca de maior desigualdade social do país. Aglomerados pelos cantos das ruas, embaixo de grandes prédios do centro da cidade, em barracos improvisados e até pedaços de papelão, crianças, jovens e adultos enfrentam na carne a frieza da desigualdade social. 

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), divulgada em novembro de 2021 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostrou que o Distrito Federal tem a maior desigualdade do país em relação ao rendimento domiciliar por indivíduo. O levantamento mostrou ainda que o índice de desigualdade no DF ficou “bem acima” da média nacional.

A antropóloga Paula Gutierrez explica que o problema da desigualdade é algo que está diretamente atrelado à ação humana, não é um processo natural, e, sendo assim, existe uma solução e uma possibilidade de mudança. Partindo para o cenário do Distrito Federal, a especialista comenta que no quadradinho a disparidade social é percebida de longe. “O DF enfrenta um projeto muito higienista, de ter um centro planejado e quem trabalhou para construção desse centro hoje na verdade vive nas periferias. Qual é o acesso do DF ao emprego, à igualdade?”, questiona.

Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED) da Companhia de Planejamento do DF (Codeplan).

E o cenário de desigualdade e pobreza se agravou após o início da pandemia da covid-19, iniciada em março de 2020. De acordo com o Serviço Especializado em Abordagem Social (Seas), a população de rua do DF aumentou cerca de 30% após o início da crise sanitária. Graduada pela Universidade de Brasília (UnB), Paula afirma, também, que o maior problema desse crescimento está na “normalização”, sobretudo com a pandemia, onde a grande preocupação foi a questão sanitária e a retomada da economia.

O economista César Bergo destaca que a realidade de muitos moradores de rua do DF é reflexo de uma migração para a capital brasileira, já que a cidade “funciona como um catalisador das esperanças dos brasileiros”. Mas, ao se depararem com um cenário econômico “complicado e perverso”, a solução de muitas pessoas é residir nas ruas. 

O Conselheiro do Conselho Regional de Economia da 11ª Região (Corecon DF) ressalta que essa não é apenas uma realidade do Brasil. “Podemos encontrar pessoas de outras nacionalidades que partilham do mesmo ‘sonho’ e ao encontrar esta realidade dura transformam-se em moradores de rua”. César Bergo observa que a economia e a desigualdade social andam de mãos dadas, pois quanto mais desigualdade existir menor será o crescimento econômico de uma região. “Podemos comprovar que fatores que prejudicam os padrões de vida e impedem a redução da pobreza são frutos da má distribuição da riqueza”, observa.

Com inquietude, a antropóloga Paula aborda uma das questões mais alarmantes enfrentadas por muitos brasilienses: a insegurança alimentar. Segundo ela, essa dificuldade tem raízes profundas e estruturais: “Para o capitalismo existir, precisa existir a fome, para precisa existir a desigualdade, precisa existir o desemprego porque é assim que se movimenta”.

O Projeto ObservaDF, da Universidade de Brasília, entrevistou mil pessoas das 33 regiões do DF, em dezembro de 2021 e apurou que 50% da população estava com algum grau de insegurança alimentar, desse número, 10,3% apresentavam o nível mais grave. Isso se explica com a alta no preço dos alimentos que não acompanha o salário mínimo atual, de acordo com a Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos divulgada pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o salário mínimo deveria ser aproximadamente R$ 5 mil para o sustento no cenário atual. 

E todas essas questões, desde o desemprego, a fome e a desigualdade social, forçam muitos a se dirigirem até os incontáveis semáforos espalhados pelas regiões administrativas em busca de um amparo. De acordo com a antropóloga, o que realmente leva essas pessoas a pedir ajuda na rua é o desespero, as contínuas tentativas falhas de conseguir um mínimo acesso. “Muitas vezes eles não têm nem acesso à internet para fazer um currículo. O sistema fez a gente acreditar que não é possível mudar. São anos e anos de exploração. A falta de fé do povo é um grande problema de conformidade. Vivemos em uma sociedade tão individualizada que  a gente culpa a pessoa em situação de vulnerabilidade por estar nessa situação”.

A fragilidade do amparo

A assimetria social existente e perceptível no Distrito Federal evidencia ainda mais a existência de pessoas em vulnerabilidade. De acordo com dados da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan) divulgados no fim de 2020, o Índice de Vulnerabilidade Social do DF é de 0,34. O número revela que o resultado está relativamente abaixo da média desejada, uma vez que para ser considerado baixo, o índice deveria ficar entre 0 e 0,20. 

O governo, por sua vez, oferece amparo para essa parte da sociedade que, de alguma forma, fica às margens. Segundo dados publicados pela Secretaria de Desenvolvimento Social do DF, atualmente estão em exercício seis programas sociais de transferência de renda, que têm como principal objetivo a superação da pobreza na capital brasileira. 

Os programas são voltados para diferentes públicos, desde famílias, adolescentes, crianças, mulheres e até pessoas que trabalham exclusivamente com a coleta de material reciclável. São eles: o DF Social, o Incentiva DF, o DF Alfa, o DF, o Agentes da Cidadania e o Agentes de Cidadania Ambiental.

Ajuda necessária

A falta de assistência governamental para amparar as pessoas mais necessitadas motiva diversas pessoas a se mobilizarem e ajudarem umas às outras. Esse é o caso da jovem Lívia Almeida, idealizadora do Projeto Aqueça Corações nas Ruas. A organização não-governamental (ONG) conta com mais de 50 voluntários, além de apoiadores/doadores, que se reúnem todas segundas-feiras para fazer e distribuir marmitas nas ruas do Gama. A iniciativa também atende, com doações, pessoas e famílias em situação de vulnerabilidade de todo o Distrito Federal.  

A responsável pelo projeto destaca que é difícil calcular quantas pessoas já foram atingidas positivamente pela ONG, “mas ajudamos por volta de 60/80 pessoas em situação de rua por semana durante todo o ano. Uma média de 25 famílias carentes por mês, às vezes esse número aumenta um pouquinho”.

De acordo com Lívia, durante a pandemia, não houve um aumento significativo na população em situação de rua no Gama, mas os pedidos de doação de cestas básicas, itens de higiene, roupas e cobertas cresceram três vezes no comparativo com antes da covid-19. O projeto também encara dificuldades para atender todas as pessoas que entram em contato pedindo ajuda devido ao encarecimento dos alimentos e a diminuição das contribuições.

O projeto, que está em atuação há quatro anos, procura ir além das doações e distribuição das marmitas: “Fazer o bem sem olhar a quem, sem julgar motivos e somente amar as pessoas sem esperar nada em troca. Saímos nas ruas para ver aquela pessoa que está excluída da sociedade, que muitas vezes não recebe um bom dia – quem dirá algo pra comer –, sentamos com eles, conversamos, sabemos o nome e conhecemos as histórias”, explica Lívia.

Embora existam diversos meios de amparo para essa população em vulnerabilidade, na avaliação da cientista política Rhuana França, a atuação do Estado ainda é insuficiente, visto que o número de pessoas desempregadas e em insegurança alimentar continua alto. Exemplo disso é a volta do Brasil para o Mapa da Fome, que aconteceu em 2018. 

De acordo com a especialista, quando o Estado releva a responsabilidade com os cidadãos, esse peso é distribuído de forma desigual e injusta. “O papel do Estado não deve se limitar a políticas assistenciais mínimas e secundárias. Acredito que o objetivo prioritário de qualquer governo democrático deve ser o de garantir que seus cidadãos tenham condições materiais para viver com dignidade, exercer sua autonomia, trabalhar de maneira segura e justa e cultivar um espírito comunitário”, explica.
Como uma alternativa de mudança, a cientista afirma que é dever da população se voltar ao Estado e demandar a responsabilidade em garantir as condições básicas de reprodução da vida, sendo elas as políticas de soberania alimentar, creches gratuitas em período integral para todas as crianças que precisem, investimento nos centros de apoio como Centro de Referência de Assistência Social (Cras) e o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), direitos trabalhistas, auxílio financeiro para mães no puerpério, ampliação da licença paternidade, transporte público gratuito, maior investimento nas universidades públicas e nas políticas de financiamento estudantil.