Tino Freitas e o amor às infâncias
A literatura infantil é um navio único, gigantesco, desafiador e acolhedor, diz o escritor
Postado em 24/06/2022
Cadê o juízo do menino? Será que ele não cansa de tanto faz de conta? O menino que falava pouco mas sonhava muito ficava pensando com que roupa iria para a festa do rei, se convidava a Leila, se na festa teria um tapete vermelho… E ele tão esperto e curioso ficava pensando: o que é preciso para ser rei? Qual a primeira palavra que um rei diz? Será que ele faz aula de samba? Quantas perguntas, menino!
Tino Freitas é um escritor cearense de literatura infantil que escolheu trazer seu mar de escrita para o Cerrado. As palavras destacadas acima são títulos de algumas de suas obras que buscam, além de entreter, trazer ao conhecimento das crianças temas sensíveis como o abuso sexual infantil e a invisibilidade de pessoas que são deixadas à margem da sociedade.
O autor tem mais de 20 livros publicados, incluindo obras em outros idiomas. Alguns de seus livros foram reconhecidos em importantes premiações como o Prêmio Jabuti, além de figurar entre seleções de destaque nacional e internacional. Nesta entrevista, Tino fala, entre outros assuntos, sobre as percepções das crianças frente as suas obras e sobre a importância da literatura como auxílio no desenvolvimento infantil.
Tino, você também está envolvido com a música e com o jornalismo, que poderia ter te levado para outros caminhos. Por que escolheu seguir na trilha da literatura infantil?
Acho que a literatura infantil se apresentou a mim como a possibilidade de reunir a música, o jornalismo e a criatividade, pois o universo que a contempla é vasto e generoso para quem se sente “múltiplo”. Certamente o fato de ser compositor me ajuda a compor em rimas, buscando sempre uma sonoridade convidativa à atenção dos leitores. O jornalismo, a atenção para o que é notícia, me ajuda a pensar em como apresentar determinadas histórias baseada em fatos, misturando-os um pouco com a fantasia, como acontece no Brasília de A a Z (livro do autor que conta a história de Brasília) e Aula de Samba e Manifestações Culturais do Brasil (obra que apresenta bens imateriais brasileiros).
Pensando melhor, talvez não tenha sido a literatura infantil que tenha se apresentado a mim, e sim, eu, ávido por conviver com essas múltiplas profissões, sem precisar pular de embarcações no curso nada calmo do rio da vida, tenha embarcado nesse navio único, gigantesco, desafiador e acolhedor da literatura infantil.
Em uma das suas entrevistas você fala que o desejo de fazer livros vem da experiência como mediador de leitura. Como foi a sensação na primeira vez que você leu um livro da sua autoria?
Ah, não lembro exatamente dessa primeira vez. O texto do Cadê o Juízo do Menino? (il. Mariana Massarani, publicado originalmente pela Manati e atualmente na Brinque-Book) foi lido para muitos leitores de diversas idades antes de virar livro. Mas lembro bem da primeira vez que fui à uma escola conversar com as crianças que haviam lido o livro. Foi surpreendente (e sempre é) descobrir as leituras múltiplas de cada leitor.
Sempre percebem coisas que não são óbvias mesmo para a gente que escreveu ou ilustrou a obra. E, particularmente, nesse dia, ganhei de presente de uma criança um embrulho de papel fechado com durex. Dentro, um parafuso. Eu fiquei muito emocionado. O livro trata sobre um menino que perde o seu parafuso (uma metáfora para o “juízo”). Não sei se a criança me deu o seu juízo para organizar o meu, ou se ela preferiu ficar sem o seu “juízo” e me deu como uma homenagem pelo livro ter propiciado a ela o desejo de desajuizar-se!
Em um mundo tão movido à tecnologia, onde as crianças têm acesso e aprendem tão cedo a usar esses dispositivos, como mantê-las interessadas nos livros, na experiência de parar para ouvir histórias, perceber cores, texturas etc?
Eu sou da ideia de que é difícil dizer como fazer para qualquer coisa. Ainda mais com crianças. O que sei é que uma das tecnologias mais antigas a sobreviver nos dias de hoje é o livro. E o uso de uma nova tecnologia não impede o uso de uma antiga. Por exemplo: as pessoas têm micro-ondas em casa e continuam usando também o fogão. Numa mesma casa, sob as mesmas interferências, você terá o caso de irmãos em que um gosta mais de ler que outro. As telas trazem o imediatismo. Amplificam a ansiedade. A leitura apresenta-nos um tempo diferente, exige mais concentração. São experiências diferentes.
É louvável se pudermos oferecê-las em momentos distintos do dia. Uma não está ali para anular a outra. No caso da literatura infantil, tela alguma pode repetir a experiência que é a leitura do livro (em papel) Quem Quer Brincar Comigo? (il. Ivan Zigg, Abacatte) ou A Tromba (il. Débora Barbieri, Casa BabaYaga). Acho que mostrar às crianças que essas tecnologias podem fazer parte do cotidiano em momentos diferentes é uma boa estratégia para incluir a leitura de livros entre os prazeres culturais da criança. Assim como visitar exposições, ir ao teatro, ao circo, jogar bola, aprender xadrez. A leitura de livros pode ser apresentada às crianças como parte do caldo cultural do que é ser humano.
A tecnologia se tornou uma vilã ou aliada da literatura infantil e de seus idealizadores? No papel de escritor, como você enxerga esse movimento?
Tudo na vida pode ter, pelo menos, dois lados. Não há uma história única. Não há uma única verdade. Nós mesmos não somos nem bons nem maus na totalidade. Encontraremos nas novas tecnologias exemplos de possibilidades de união pela qualidade, como pela desunião. Com a literatura também.
Uma escola pode promover um campeonato entre seus alunos premiando a leitora que leu mais livros naquele ano. A meu ver, isso é um equívoco. Ler mais livros não transforma alguém num leitor excelente (no sentido de compreender o livro ou de compreender o mundo de forma melhor a partir de suas leituras).
Assim como um escritor de muitos livros não é mais (no sentido profissional) que um escritor “bissexto”. Conheço pessoas que começaram lendo o que considerávamos “baixa literatura” nos anos 1980 (as séries Julia e Sabrina, por exemplo) e que anos depois se emocionaram com Érico Veríssimo.
A experiência de leitura é única. Não pode ser repetida. No seu rol de amigos, por exemplo, teremos pessoas que acham que o tapa de Will Smith em Chris Rock no Oscar 2022 foi uma atitude mais que correta. Outras pessoas vão defender que nada justificaria aquele tapa. Ser vilão ou herói depende muito do lado em que se está.
Em resumo, com tamanha dicotomia, penso que é melhor termos todos a oportunidade de descobrir nossas verdades com as novas tecnologias (como celulares 5G, drones, tabletes, plataformas de streaming de filmes, músicas, etc) e com tecnologias tradicionais como o livro de papel. Precisamos dispor de tempo – e oportunidades – para desfrutarmos de todas elas.
De que forma a literatura infantil impacta o desenvolvimento das crianças, na sua opinião? Como você percebe que os temas mais sensíveis citados em seus livros são recebidos pelas crianças? Acredita que elas entendem, ficam curiosas para buscar mais informações?
A literatura (seja ela de qualquer gênero) é um verbo. Ela acontece quando o leitor encontra o livro. E o livro é uma ferramenta que conecta o leitor não apenas consigo mesmo, mas com a Humanidade. A partir dos livros, das histórias que vivenciamos ali, nos conectamos com o passado, o presente e o futuro. E isso nos ajuda a crescer como cidadão. A partir da literatura existirmos com mais empatia com o outro. Penso que podemos apresentar o mundo para as crianças a partir dos livros. Claro que numa linguagem e profundidade possíveis de serem alcançadas por elas. Não posso dizer como as crianças vivenciam a literatura quando encontram com os meus livros.
Isso é muito particular delas. De cada uma. E não há certo e errado aqui. Há o que cada criança percebe. E isso deve ser respeitado. Não devemos menosprezar a inteligência das crianças e propor uma literatura menor, pobre em sentidos. Assim como na literatura “adulta”, na literatura infantil há livros de ótima e de péssima qualidade. Não apenas os autores, mas os mediadores (pais, professores, bibliotecários, mediadores de leituras adultos) precisam ficar atentos para o fato de que as crianças têm uma cognição diferente dos mais velhos. Então, para uma criança, “brincar de médico” não tem a conotação sexual que pode ter para muitos adultos.
Uma história só com “coisas boas”, em que as crianças só comem verduras, só fazem o que é certo, só obedecem aos pais, provavelmente não vai chamar a atenção das crianças – além de não refletirem o que é o mundo. Na literatura infantil, as crianças experimentam o mundo de uma forma segura, ao lado dos pais, dos professores, etc. Assim crescem mais fortes. Se o mundo que encontram nos livros forem feitos apenas de “açúcar”, quando chegar o tempo de vivenciarem o mundo por si mesmas, não saberão como lidar com o “sal”.
Você poderia falar um pouco sobre a história e sobre a importância do projeto Roedores de Livros?
O Roedores de Livros nasceu em 2006, a partir da ideia de sua criadora e coordenadora, Ana Paula Bernardes, como uma forma de experimentar na prática o que ela entendia como mediação de leitura com e para crianças. Hoje é uma Biblioteca Comunitária com cerca de 5 mil livros infantis. O que posso dizer sobre a importância do Roedores de Livros tem a ver absolutamente comigo. O projeto me ensinou os primeiros passos, o equilíbrio para caminhar depois com mais segurança (mas sempre aprendendo novos passos e caminhos) no universo da literatura infantil.
Então, para mim, o Roedores de Livros foi semente. No meu íntimo, desejo a todos e todas que tivemos e temos a sorte de ouvir e contar histórias no Roedores de Livros (crianças e adultos, leitores, ouvintes, autores) sejam (tenham sido) tocados pela ideia da amizade, da ideia de que, embora diferentes, juntos podemos ser mais. Sou um homem melhor hoje porque o Roedores de Livros atravessou o meu caminho e me convidou à grande aventura de partilhar histórias.
Alguma criança já influenciou diretamente na construção de alguma obra sua no sentido de dar palpite nas histórias, nas cores, nas ilustrações. Você já teve essa experiência?
Todas as histórias que escrevo passam ou pela criança que fui ou pelas crianças que encontro no meu cotidiano. Até as histórias mais fantasiosas, mais absurdas, têm como base fundamental as infâncias, diversas, que me atravessam. Não seria um escritor se não estivesse atento às memórias de minha infância. Não seria escritor se não estivesse atento às novas infâncias que encontro nas escolas, na fila do cinema, nas notícias dos jornais. Minhas histórias são feitas dessas infâncias.