Clarice Gonçalves: uma arte sintonizada com sua experiência de vida e o tempo presente
“A arte tem que fazer questionar, a arte que é só para agradar é uma estética decorativa”
Postado em 09/04/2022
Clarice Gonçalves pertence à nova geração de talentos da pintura brasileira, profundamente sintonizada com as questões de seu tempo. Graduou-se em Artes Visuais pela Universidade de Brasília-UnB em 2008, mas desde 2004 vem expondo com regularidade seu trabalho, participando de mostras no Rio de Janeiro, São Paulo, Londres (Inglaterra), Nova Iorque (Estados Unidos) e Havana (Cuba). Percebe a natureza cerrado do planalto central, com sua luz, cores, céu e texturas, o espaço por excelência de sua obra.
Quando você se descobriu artista? E quando percebeu a arte como ofício?
Eu confesso que não foi muito premeditado, sempre tive a arte como uma das minhas principais formas de expressão e de lidar com questionamentos, estranhamentos, com coisas que eu não conseguia verbalizar. Acho que se tornou um prolongamento da auto expressão quando eu vi que existia um curso de artes audiovisuais dentro da Universidade de Brasília e conheci pessoas que estavam fazendo este curso. A universidade foi um percurso de visualizar esta possibilidade e se dar conta de todos os percalços. As pessoas têm uma visão muito idealizada da profissão do artista, mas a gente abdica de muitas coisas, principalmente a segurança financeira.
Fale sobre o feminino na sua obra?
Eu gosto de colocar o feminino como ser humano. Acho que o feminismo ainda está na busca de reivindicar para as mulheres um pouco de humanidade. Para além de ficar dando voltas sobre o que é o feminino? O que é ser mulher?
Me interessa falar a partir da minha corporeidade, das minhas questões, do que me toca e movimenta, ou seja, o que significa nascer com um útero nesta sociedade? O que é menstruar? O que é parir? Pois isso são manifestações físicas, mas também muitas de nossas opressões vêm daí.
Não é porque a gente se veste de uma forma x ou y, somos oprimidas historicamente por causa da nossa biologia. Meu trabalho é falar dessa mulher que é um ser humano, mas que também é um animal, que tem desejos e instintos. De recobrar este lugar de um corpo desejante e visceral. O feminino é meu lugar de fala e descontentamento.
Quando a maternidade ficou mais presente?
Meu filho está com 8 anos. Em 2019, eu fiz uma exposição, no Museu da República chamada “Matriz” e ali eu coloquei muitos dos trabalhos que eu fiz durante a gravidez e durante o puerpério, que foi muito marcante na minha carreira, na minha vida e continua sendo, porque maternidade é para sempre. As mulheres mães são a base da sociedade, e a maternidade ainda é um tabu, altamente romantizada, parece mesmo uma ratoeira, com todo este romantismo envolta que é para as mulheres continuarem caindo. Costumo dizer que a gente vive num país onde a maternidade é compulsória, nenhum método anticonceptivo é 100% eficaz, não tem educação sexual nas escolas, e tem uma camada religiosa reprimindo o autoconhecimento, cuidado e outras coisas.
Como você vê a questão da arte e das disputas de poder, do posicionar politicamente?
A arte tem que fazer questionar. A arte que é só para agradar é uma estética decorativa. Uma obra de arte tem este lugar de provocação e de trazer brechas e chaves de entendimento para a vida que, muitas vezes, a gente não consegue em uma conversa, em um texto, em um livro. Obviamente que cada pessoa vai olhar para aquela obra e vai observar uma coisa diferente, a partir das suas próprias vivências, mas para mim é fundamental que a arte tenha este papel de incômodo e reflexão.
Como você vê a interação/reação do público com sua arte?
No geral é muito positiva, claro que o grande momento da obra com público é numa exposição, pois tem uma seleção das obras, se escolhe uma narrativa e se estabelece um diálogo com público. É diferente de uma pessoa que vem aqui (Ateliê) e vê uma obra ou que vê minha obra no instagram. Quando a pessoa tem a oportunidade de ir para uma exposição, ela vê o tamanho da obra, presença textura, contexto e iluminação, tudo isso, são elementos de leitura da obra. Claro que tem gente que se sensibiliza negativamente, depende do processo de cada pessoa consigo mesmo e com o tema. Então, sempre tem alguma reação negativa, que para mim é positiva, pois está fazendo pensar.
Qual exposição foi mais especial para você?
A exposição “Matriz” foi um processo de cura pra mim, eu tentei proporcionar um acolhimento que gostaria de ter tido. Montei um ateliê no anexo do museu com brinquedoteca e fiz uma convocatória para mães artistas para produzirem obras sobre esta temática da maternidade não romantizada. Então as crias estavam ali, tinham cuidadores, brinquedos e a gente estava na parte de cima compartilhando. Fiz uma curadoria destes trabalhos que depois foram expostos junto com minha obra. Elas tiveram um pró-labore também. Então para mim foi um trabalho muito revolucionário e foi uma forma de mostrar a potência destas mulheres, porque existe um estigma do que uma artista vai produzir depois que ela vira mãe. As pessoas já ficam esperando que ela vai largar ou se continuar vai fazer uma arte em torno do bebê. A partir da exposição fundamos também o “coletivo matriz”, e a gente continua atuante, fazendo intervenções urbanas pela cidade e lambes. E a exposição “Idílio”. Foram obras produzidas durante a pandemia e veio deste sufocamento. Novamente eu me vi sozinha em casa com meu filho, foi quase um segundo puerpério, mas toda a questão da ansiedade e do medo com vírus. E tive essa necessidade de me sentir em lugares onde tivesse paz, me sentisse acolhida, tivesse um colo.