Formas culturais padronizadas são verdadeiro fascismo, pois são sutilmente autoritárias e violentas, diz Giancarlo Cutrona

Em entrevista, documentarista italiano fala sobre os desafios para a cultura

Rosilene Maria de Oliveira

Postado em 20/05/2022

Giancarlo Cutrona tem seu contexto regional como fonte de inspiração, estudo e lugar de cuidado. Crédito: arquivo pessoal

Giancarlo Cutrona é natural da Catânia, sul da Itália. É  documentarista, poeta e ativista cultural. Fundador  do festival “la culturale” https://laculturale.org/  e da rede de ativistas culturais https://progettosyllabus.org/ Seus principais  documentários,  Nixima – Convivere col monster (2015), Ccà/Qui (2017) e Lockdown – Le voci della città” (2020). Seus trabalhos apresentam forte apelo regionalista, principalmente na poesia, ao mesmo tempo em que  são  profundamente ligados ao contexto global e ao momento presente. Ele possui uma ampla visão do contexto europeu, tendo vivido na França, na Holanda e depois na Bélgica, onde trabalhou cerca de uma década como “criador de conteúdos” no setor do marketing e comunicação.  

O documentarista fala sobre os desafios atuais para a cultura, em entrevista pela rede social Instagram, com tradução livre. 

Diante de todos os desafios de ordem econômica e política que os países atravessam hoje, qual o papel da cultura?

O papel da cultura é trazer à tona uma profunda reflexão sobre as causas e efeitos dos fenômenos sociais. Uma reflexão que, no entanto, não é individual, não pode e nunca deve ser monotemática. Deve dar espaço para diversas vozes. Acredito que o desejo de emancipação é uma tensão que empurra o homem para a liberdade e essa liberdade não acontece apenas a partir de si mesmo ou de um autoconhecimento. Neste sentido, cultura também significa cuidar das coisas: da própria civilização, da história, da identidade.

Imagem capturada do documentário Ccà/Qui (2017). Credito: Arquivo pessoal

Qual a importância do seu contexto regional para suas produções culturais? E quais as dificuldades que você enfrenta enquanto ativista cultural?

O contexto regional é importante para mim como fonte de inspiração, como objeto de estudo e como lugar de cuidado. Mas se falarmos de produção, principalmente em termos de apoio econômico, os espaços regionalizados são muito penalizados. Isso porque a política não se importa exatamente pela cultura e pela arte e quando as apoia é sempre voltada para uma espécie de “hegemonia cultural”, para usar um termo gramsciano [referência a Antonio Gramsci, filósofo maxista, historiador e político italiano]  . Assim, expressões culturais regionais estão fora do objetivo de apoio institucional. 

De fato, nisso também reside as principais  dificuldades enquanto ativista cultural: o  apoio das instituições.

Pôr-do- sol, Catânia, sul da Itália. Crédito: Arquivo pessoal.

“Vivo num mar
que não tem piedade.
De um céu
que às vezes enlouquece
e às vezes chora.
De uma rocha
que não se envergonha
de sua velhice,
nem do tempo que passa
e arranha grosseiramente
as camadas.”

De viver, 08 de janeiro de 2022

Qual o papel das redes sociais para o ativismo cultural? Você vê diferenças deste papel entre os diversos países em que você esteve?

Na Itália, as redes sociais são muito usadas. Não tenho dados precisos em mãos, mas a impressão é que seja maior que em outros lugares . Porém, quanto ao seu papel, apresenta um sentido muito político (o que também não deixa de se referir a um aspecto cultural). Um outro ponto que analiso é que parecem entrar em uma fase de declínio geral. Isso na minha opinião se deve sobretudo a algumas escolhas “editoriais”, que transformaram essas plataformas de lugares de debate e abertura, em lugares de choque e fechamento. De tal maneira que sua forma de regulação e censura não deixa de ser também o pré-anúncio de um modelo de mundo que está sendo construído gradualmente.

Imagem capturada do documentário Lockdown – Le voci della città” (2020). Crédito: Arquivo pessoal

Historicamente a Europa, em termos hegemônicos, tratou as manifestações culturais dos países fora da Europa de maneira muito autoritária, como você analisa essa relação hoje?

Não parece ter mudado muito. Ao contrário: o mundo globalizado produziu formas culturais padronizadas a partir de um único pensamento. Esse tipo de aprovação – como disse Pasolini [referência a Pier Paolo Pasolini, cineasta, poeta e escritor italiano]- é o verdadeiro fascismo. Pois é sutilmente autoritário e violento, e  não permite que a humanidade evolua, uma vez que a impele em uma única dimensão. De fato, um pensamento diferente gera violência e repressão sistêmica: todas as nações do mundo, nesse sentido, são tratadas como colônia e perdem sua identidade, fato profundamente relacionado à perda de soberania.