Beatriz Ribeiro: perdi meu marido para uma doença, o alcoolismo

Jornalista conta a experiência de viver ao lado de um alcoólatra

Filipe Briner

Postado em 16/04/2024

O alcoolismo é uma doença que causa dependência. Segundo o relatório Vigitel (Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico) de 2023, programa que compõe o sistema de Vigilância de Fatores de Risco para doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), do Ministério da Saúde, o consumo abusivo de álcool aumentou comparado aos últimos anos. A população geral teve um aumento de 18,4% para 20,8% entre 2021 e 2023. Além do alcoolismo, a bebida pode trazer diversos tipos de doenças como câncer, cirrose, hepatite, pancreatite, neuropatia alcoólica, entre outras. 

Beatriz Ribeiro, jornalista, de 65 anos, conta nesta entrevista como foi conviver com seu marido médico e alcoólatra. 

Quando você percebeu que seu marido estava se transformando em um alcoólatra? 

Armando era médico de uma família de médicos. E com isso, obviamente, eu me coloquei numa posição que a questão de saúde eles dominavam. Uma coisa muito boa do nosso relacionamento é que nós éramos muito sinceros um com o outro. Eu ficava 100% à vontade. Era um cara que não julgava, que me admirava e eu a ele. O que me chamou atenção foi quando ele começou a mentir com besteiras. Para mim, mentir é um indicador muito preocupante, porque esbarra na confiança.  

Eu, quando fui apresentada ao Armando, ele era conhecido como um cara que sabia beber bem na faculdade. Ele tocava violão, então era um cara mais da noite. A medicina é uma das profissões que propicia vícios pela realidade pesada e pelo acesso fácil à medicamentos. Era comum tomarmos café da manhã na padaria e ele ir para aquele boteco tradicional do Rio de Janeiro, beber aquele cálicezinho de cachaça. Eu o perguntava: como você consegue tomar cachaça em jejum? Por mais que parecesse loucura, aquilo não me chamava tanta atenção. Porque aquele trago de cachaça não impactava no comportamento dele. Ele não era o bêbado que a gente aprende, o cara que bate, que quebra.

A pá de cal foi uma reportagem que trazia o depoimento de uma mulher que descrevia o relacionamento dela com o marido que apresentava os mesmos sintomas do meu marido: mentiras tolas, vômitos frequentes e muito tempo dormindo, alegando cansaço.

Como foi depois que você confirmou que ele tinha a doença? 

Levei a reportagem para casa e ele assumiu que estava enfrentando esse problema. O primeiro passo foi ir a psicólogos, psiquiatras. Melhorou e só melhorava quando frequentava o AA. Mas, mesmo melhorando, ele não permanecia nas reuniões por ser um ambiente onde a maioria era de pessoas humildes. O tabu, o preconceito pesava e ele saia. Ficamos grávidos da nossa primeira filha porque ela, a Alice, aproveitou a necessidade de eu ter que suspender o anticoncepcional para furar a tabela. Eu fiquei apavorada, mas Armando ficou muito feliz. Mesmo nunca pensando em usar gravidez como ferramental para ele parar de beber, vi nisso uma motivação e ele parou. Foram anos mágicos. Mas ele voltou e com a resistência bem mais baixa. Duas cervejas e já vinha o sono. Então, eu falei para ele voltar para o A.A (Alcoólicos Anônimos) e entrei num grupo chamado Al Anon, que é um grupo de suporte para a família dos alcoólicos. 

O Al Anon foi muito importante para mim, para me fortalecer. Porque a gente foi se isolando. Era um misto de vergonha, porque ele ficava bêbado em batizados e festinhas de aniversário de crianças, e também porque eu queria preservar a imagem do homem que eu amava. Mesmo com tantos amigos médicos, eles não concordavam comigo sobre a questão do alcoolismo. No Al Anon, vi que essa reação era muito comum, a negação dos amigos e o isolamento. 

Nos separamos e voltamos novamente. Foi quando disse que ficaria com ele até ter outro filho. Era o tempo para ele seguir no A.A. Ao completar três meses de gravidez de nosso segundo filho, Ivan, pedi para ele sair de casa e ele aceitou. O divórcio de fato ocorreu cerca de três anos depois e ele faleceu após uns dois anos, aos 44 anos.

Beatriz Ribeiro e seu marido | Arquivo Pessoal/Beatriz Ribeiro

Quais foram os maiores desafios na sua vida após o falecimento de seu marido? 

O maior desafio permanece até hoje – não compartilhar com ele as grandes pessoas que nossos filhos se tornaram. Ele não era um cara operacional, era um cara culto, com visão social. Eu sempre fui uma mãe divertida, sou da alegria, mas também da disciplina. Isso muitas vezes me deixava em posição vulnerável. Porque viajava muito a trabalho, estudava à noite e ficava pouco com meus filhos. Mas isso não liberava de uma chamada de atenção nas poucas horas em que estávamos juntos. Temia eles não gostarem de mim. Mas deu super certo. Sempre tratei a questão do alcoolismo de forma sincera e objetiva – alcoolismo é uma doença, não falta de caráter ou outra besteira que as pessoas falam.

Que lição você tirou da situação e gostaria de passar para as pessoas?

Beatriz e seus filhos (Alice e Ivan) | Arquivo Pessoal/Beatriz Ribeiro

A importância do conhecimento. É ele que nos fortalece a quebrar tabus, a fugir de pré-julgamentos, a nos fortalecer, a não nos colocar na posição de vítima. Aprendi que o alcoolismo está presente em todas classes sociais. Que o bêbado quieto é o que morre mais cedo. A importância de se ter uma rede de apoio para vencer o vício. Que o A.A tem uma magia que traz resultados excepcionais. Fico feliz em ver atores, jornalistas, celebridades que se estabilizaram pelo A.A. É essencial a família, sobretudo a parceira ou parceiro do alcoólatra homem ou mulher, porque as mocinhas também bebem, procurarem o Al Anon. A convivência com a doença pira todo mundo. Outra coisa, aprendam a diferenciar omissão de intromissão. Ouçam, falem, ofereçam e aceitem ajuda. Tenham coragem para quebrar tabus, como eu passei a ter ao responder que o homem que amei morreu de alcoolismo. “Mas ele não era médico?” e eu respondo “é uma doença democrática, pode acontecer com qualquer um”.

Armando foi a pessoa que mais admirei e amei e, consequentemente, é a que mais odiei por ter me levado de mim. Eu tive uma rival na minha vida, a birita. Mas, há sempre o outro lado, fiquei com Alice e Ivan, nossos filhos e minha fonte inesgotável de estímulo para ser uma pessoa melhor. O cara deixou dois legados.