Muito além de pontos de comércio, feiras livres são locais de cultura
Feira da Ponta Norte conta com livreiros, música e cerveja, proporciona um ambiente de socialização para pessoas de todos os gostos e idades
Postado em 02/07/2024
As feiras livres têm uma história que remonta à Idade Média, surgem como uma intersecção entre a religião e o comércio. As feiras desempenharam um papel importante no crescimento de diversas cidades européias ainda no século XIII. No Brasil, temos o exemplo da cidade de Feira de Santana que, quando foi elevada de vila à categoria de cidade em 1873, foi batizada de Comercial Cidade de Feira de Santana.
Entretanto, as feiras são mais que locais de comércio e perderam grande parte de sua ligação e dependência de outrora com festividades religiosas. As feiras são, e sempre foram ao longo de sua história, uma manifestação cultural do local onde estão inseridas. Diferentemente de um mercado ou de um sacolão, que podem oferecer os mesmos produtos vendidos numa feira, e da internet, que oferece virtualmente qualquer produto, a troca cultural e a vivência promovidas por uma feira livre fazem parte do que chamamos de cultura popular, que não é comercializável.
O comércio de produtos agrícolas é o pretexto, o intercâmbio cultural é o que mantém as feiras ainda movimentadas e espalhadas pela cidade em diversos dias da semana. Em seu trabalho de conclusão de curso sobre o tema, Camila Guimarães, do Centro de Estudos Latino Americanos sobre Cultura e Educação da Universidade de São Paulo, afirma: “a feira livre de caráter predominantemente hortifrutigranjeiro se insere como uma possibilidade de reafirmação da identidade do povo brasileiro, já que destaca os costumes e a cultura popular, promove troca de conhecimentos, resgate de valores e sensação de integração social.”
A feira da Ponta Norte
Em um gramado próximo ao Comércio Local da 216 Norte, todos os sábados, a partir das 8 horas da manhã, acontece, desde 2019, a Feira da Ponta Norte. A feira começou por iniciativa de assentados ligados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST). Além de barracas vendendo verduras, frutas e legumes, a feira, desde o princípio, já contava com a barraca de figuras como Dona Bonitona, que produz deliciosos biscoitos, doces e uma inigualável farinha de mandioca temperada.
Além disso, ainda em 2019, começaram a aparecer certas pessoas que vendiam artesanato, roupas, cordeis e livros. Uma dessas figuras foi o professor e poeta Ismar Lemos, que levava uma seleção de livros usados, com foco em grandes clássicos brasileiros, para vender na feira. A partir da segunda metade de 2020, a feira cresceu cada vez mais e se tornou um local de encontro e de socialização da vizinhança.
Lugar de vivências culturais
A feira hoje cresceu além daquele primeiro gramado onde se encontrava, atravessou calçadas e atrai pessoas de outros bairros. Na encruzilhada das calçadas, encontra-se a barraca de Piragibe Vieira da Paizão, de 48 anos. De frente para uma barraca que vende legumes, as bancadas de Piragibe estão repletas de livros. Há algumas caixas com CDs e discos de vinil e, atrás da barraca, sob uma árvore, dois tabuleiros de xadrez, que atraem crianças, adolescentes, adultos e idosos.
Um rapaz jovem pergunta para Piragibe quanto custa um livro relativamente grosso, bem ilustrado, e ele responde “de zero a cem”. Piragibe conta que os livros estão lá para quem quiser e que se alguém se interessar mas não tiver como pagar, pode pegar e levar para casa.
Piragibe começou a expor seus livros na feira a partir de 2020. Relembrando, emocionado, conta que perdeu pessoas queridas naquela época. Isso o fez pensar que “se alguém vai ficar sozinho em casa, que pelo menos tenha um livro pra fazer companhia” e que foi sua maneira de ajudar a “manter a chama da cultura acesa”. Conta que o professor Ismar já estava na feira há mais tempo e que, com a benção dele, passou a montar sua barraca lá todos os sábados.
A barraca de Piragibe foi o centro gravitacional de muitos aficcionados por livros e por conversas. Uma dessas figuras foi Osmar, um grande fã de xadrez, que questionou Piragibe; “como você pode querer ter um espaço cultural se não tem um tabuleiro de xadrez?”
Outra barraca vizinha de Piragibe é a de Artur Cavalcanti, de 32 anos, que vende livros e discos na feira há 2 anos. Inspirado por Piragibe, começou a expor parte de coisas que tinha acumuladas em casa em um canto da barraca de Pira (como muitos chamam Piragibe). Artur conta que foi atraído pelo espaço de interação que lhe permitiu conhecer outros aficcionados por livros e vinil, além de ser um local de aprendizado, afirma que “a gente aprende trocando ideia”.
Frequentador assíduo da feira e cliente fiel de Artur e de Piragibe, com limão, açafrão e tomates cereja na sacola, Adriano Fernandes, de 52 anos, conta que por muitos anos viajou de bicicleta em outros continentes e que em todos os lugares que conheceu , buscava feiras por duas razões: “primeiro, pela sobrevivência, pelo alimento local e de qualidade; segundo, pelas relações e interações; entrar numa feira é como entrar num templo religioso”; e acrescenta que “são locais que permitem uma vida cotidiana contemplativa em comunidade”.