Hugo se levantou naquela manhã cheio de energia, beijou a avó antes de sair para comprar o bacon para seu café gorduroso matinal. Assim que chegou na mercearia foi repreendido pelo haitiano que ficava atrás do balcão da loja, aquele calhorda, roubando empregos de verdadeiros brasileiros. Ele tinha reclamado pelo fato de Hugo entrar na loja sem máscara; ele retrucou dizendo que tinha um informe na TV o liberando do uso daquelas amarras faciais. Apesar de Hugo saber que a flexibilização era só em ambientes abertos, ele preferiu omitir a informação, afinal, aquilo não o beneficiaria em nada. Catou o que precisava da prateleira e jogou sobre o balcão, o haitiano fez cara feia, passou o produto.- Hugo apenas sorriu em deboche enquanto procurava o dinheiro na carteira.

Depois de comer bastante, Hugo se sentou em frente ao computador, como habitualmente fazia, deixando as abas do Twitter, Telegram e da mais nova rede social de Trump, o GETTR, abertas. Começou a dar scroll no Twitter, vendo o feed de notícias: “Especialistas dizem que Trump teria vencido Joe Biden, se as eleições fossem hoje”. Like. “Bolsonaro diz que florestas não pegam fogo porque a folhagem é úmida”. Like. “Doutor Cloroquina da França é investigado por distorções em pesquisas em seu hospital”. Like. Assim era o dia a dia de Hugo, comentando e interagindo como verdadeiros compatriotas, não aqueles representantes chucros lá fora, mas sim os daqui de dentro, os da tela.

Foi durante uma tarde qualquer enquanto Hugo deslizava com a rodinha do mouse que viu a Senadora Wendy Rogers, uma mulher branca americana, seu tipo de pessoa. O que mais lhe surpreendeu foi seu tweet: “Big Bird is a communist”. Porém ele, assim como 95% da população brasileira, não fala um “a” em inglês, mas quem liga pra isso quando se tem a internet, não é? Rapidamente Hugo identificou que “communist” era facilmente associável a palavra comunista, logo, ele deduziu que a nobre senadora acusava alguém de comunismo. Mas, ele não reconheceu o sujeito na frase, “Big Bird”, quem era aquele? Rapidamente ele correu para o Google e colou a informação, as imagens que surgiram o chocaram, era ninguém menos que Garibaldo.

Mas como podia um personagem de sua infância, uma criatura tão inocente e feliz pertencer a uma ideologia tão vil e cruel como o comunismo? Sem mais tardar ele não foi ao Google se inteirar sobre o assunto, mas sim aos grupos de Whatsapp, esses aos quais ele já pertencia fazia algum tempo, e adquiriu alguma credibilidade com as notícias que via no Twitter e repassava aos compatriotas ali reunidos. Naquele dia em especial ele enviou o tweet e perguntou se alguém sabia alguma coisa sobre aquele fato. “Qualquer informação será de utilidade”, escreveu.

Não demorou muito para alguém responder. Igualmente abismado, enviou um link onde mostrava um episódio perdido da Vila Sésamo, esse no qual o tema principal era: conflitos. Durante o suposto episódio, a coisa ia escalando, como notara Hugo. No primeiro bloco Garibaldo estava normal, mas depois de um trecho com o Elmo, ele começou a vestir roupas de militar, até um ponto em que já estava com o cape e o uniforme completo. Hugo engoliu em seco, a senadora tinha razão. A perversão comunista da União Soviética tinha dominado as mentes dos bons capitalistas americanos. Ele retornou ao grupo, contando sua surpresa. Nunca lembrara de ter visto nem sequer um relato sobre aquilo. Rapidamente alguém no grupo respondeu, dizendo que quando os EUA venderam o programa para a Rússia eles fizeram esse episódio por debaixo dos panos para ser exibido apenas lá, dizendo de forma acobertada, que Garibaldo apoiava os ideais comunistas.

Hugo se reclinou em sua cadeira, fazia todo sentido. Doutrinação desde a infância era uma das propostas malignas do temível comunismo. Então seu celular tocou outra vez, era outro compatriota, ele tinha mandado um vídeo, tinha cerca de cinco minutos. Hugo, sem muita cerimônia, abriu o vídeo enviado e viu um homem de óculos e jaleco. Ele estava numa sala muito bagunçada, tinha um quadro negro atrás de si, vários papéis colados e tachinhas ligadas por barbantes coloridos, o vídeo era supostamente russo, mas tinha legendas em português.

– Isto é uma gravação para posteridade. – O homem limpou o suor da testa, parecia nervoso. – A nossa primeira iniciativa, o projeto M.U.P.P.E.T.S. deu muito errado, não gerou o resultado desejado. Então partimos para algo com mais tradição na mídia dos porcos capitalistas, a Vila Sésamo. – Hugo levou as mãos a boca em surpresa. – Parece que o financiamento dos direitos ocorreu bem, então estão fechando nossa sessão científica, mesmo depois de termos testado nossos experimentos em diversos países, porém, ouça bem. – O homem de jaleco faz uma pausa dramática. – Eles são verdadeiros, todos eles. – Um barulho estrondoso assusta o suposto cientista, alguém na sombra marcha em sua direção, e a filmagem encerra.

Hugo estava de queixo caído. Experimentos russos para desenvolver seus próprios doutrinadores infantis. Fazia todo sentido. Mais uma vez ele jogou suas reações no grupo, eles se apavoraram, a ameaça comunista nunca esteve tão próxima. Por horas eles debateram o que era a sombra, e se o suposto cientista tinha indicado que havia projetos teste como aquele em outros países. Seria o Brasil uma filial de aberrações de pelúcia?

De repente seu computador subitamente desligou, ele deu algumas porradas na máquina, mas ela nada de voltar a funcionar. Ele começou a examinar o aparelho, tudo parecia no lugar, ainda tinha energia em casa. Ligou o interruptor e viu a luz se acender, Hugo perdeu algum tempo procurando alguma diferença na conexão dos cabos.

– Você foi muito longe. – Disse uma voz vinda de detrás dele. Ele se virou amedrontado, vendo ali de pé, O boneco José Gota. – Eles me pediram para levá-lo, mas por mim vocês conspiracionistas não merecem nem a chance de passar por tribunal. – Hugo engoliu em seco e viu um saco preto sendo colocado sobre sua cabeça.

Quando finalmente despertou, se viu numa corte cheia de bonecos, e sob a cadeira, lá no alto, estava o Monstro do Biscoito presidindo a sessão. Na corte vários Muppets eram jurados e pareciam conversar entre si. Então o juiz bateu seu martelo e pediu para entrar os advogados de defesa e o advogado de acusação. As portas se abrem e entram B1 e B2, também conhecidos como Bananas de Pijamas e Caco, o sapo. Os Bananas se sentam do lado oposto da sala, enquanto o Muppet se senta ao lado de Hugo.

– Não diga nada, certo? – Aconselha Caco. Hugo parecia completamente paralisado, ele não podia acreditar em seus olhos, eram bonecos de verdade, que andavam e falavam. Não tinham ventríloquos em lugar algum, aquilo era impossível.

– Está sessão está iniciada, biscoito. – Disse o Juiz.

– Meritíssimo. – Começou B1

– O caso aqui é grave. – Completou B2. – O acusado, Hugo Barbosa, está sendo trazido para o tribunal…

– Para ser julgado por espalhar notícias falaciosas ao nosso respeito. – Continuou B1.

– Protesto! – Gritou Caco, o sapo. Biscoito permitiu sua intervenção. – Veja bem Meritíssimo. Eu não quero ser leviano, mas acho que os bananas estão querendo acusar o meu cliente de criar Fake News, sendo que o Hugo aqui apenas repassou uma informação confiável que viu na internet.

– Sinceramente, Sr. Caco, não nos venha caluniar. Hugo sabia muito bem no que estava se metendo quando repassou tamanha bobagem pela internet. – Disse B1. Biscoito pareceu concordar mais com os bananas. – Isso tudo há de ser provado pela nossa testemunha-chave aqui hoje. Pode entrar, testemunha.

Cruzando o tribunal a passos rápidos surge um pássaro gigante e amarelo, Garibaldo! Ele se senta na tribuna, ele tem um lenço nas mãos, parece muito emocionado, no sentido ruim da palavra obviamente. Ele pede alguns minutos antes de começar a falar.

– Aqui está, bonecas e bonecos do júri. Esta principal vítima desta calúnia feita pelo senhor Hugo, o pássaro amarelo, o bastião da infância, o senhor Garibaldo. – Anunciou B2.

– Conte para o júri, Garibaldo, conte a eles os momentos de terror que você viveu. – Pediu B1.

– Como o nobre advogado já disse, eu sou uma grande figura infantil. – Disse o pássaro entre o choro. – E com essa influência que eu tenho, eu queria espalhar a palavra do bem, queria ajudar a gente sair dessa situação que atingiu a todos, da pandemia, né? Aqui nos EUA as pessoas têm cada vez menos tomado vacina e até onde eu sei diversos dos internados hoje são pessoas que não tomaram nenhuma dosezinha de vacina, eu só… – Ele chora mais um pouco. – Eu só queria que isso passasse logo, pra ver as crianças de novo. Mas então um monte desses monstros começou a me atacar na internet, e o Hugo era um entre essas pessoas horríveis, dizendo que eu era… eu não consigo nem dizer…

– Viram, júri, como a testemunha está abalada com essa situação terrível? – Perguntou B2 aos bonecos do júri.

– Muito obrigado, senhor Garibaldo pela sua participação, ela foi bastante esclarecedora. – Disse B1. – E com certeza as providências serão tomadas.

– É isso, Meritíssimo. – Disse B2. Caco se levantou para começar sua defesa, porém, biscoito ergueu a mão.

– Diante de tamanha prova, eu acho que o júri deve se reunir lá fora e tomar uma decisão final sobre o caso, biscoito. – Disse o Juiz. Caco até quis dizer alguma coisa, porém se conteve, entendia perfeitamente a situação. Hugo permanecia calado, não sabia o que fazer, como agir numa situação como aquela, o que falar sobre o assunto. Era tudo tão surreal para sua mente processar!

Algum tempo depois, os juristas retornaram, assim como o juiz, todos tomaram seus devidos lugares, a corte foi retomada, Biscoito pigarreou e disse:

– Depois de uma reunião longa, decidimos que o réu Hugo é culpado de disseminar notícias falsas e desinformação arbitrária, quando há intenção de prejudicar a imagem de alguém, Biscoito. – Caco se pôs de pé, mas o meirinho já o encarou antes mesmo que ele dissesse algo. – A sentença é de vinte anos, biscoito. – Ele bateu com o martelo e…

Hugo cai da cadeira, ele se vê novamente em seu quarto, parece feliz de ter voltado para casa, se pergunta se tudo aquilo foi um sonho. Ele se levanta, crendo que está definitivamente no mundo real, já que sente o ombro doer de verdade. Ele pega a cadeira do chão, percebe que a tela do computador está ligada, com todas as abas e grupos de que Hugo participa ali. Ele se sentou novamente. Pegou o mouse e o arrastou para clicar na aba do Twitter, porém, ele mesmo se impediu, hesitando por um momento. Hugo então abriu o Google e foi pesquisar em sites com alguma credibilidade sobre o caso do personagem, acabou descobrindo que tudo que ouvira no seu sonho era verídico, e que nada do que tinha recebido nos grupos condizia com a verdade ou com a realidade.

Por iniciativa própria ele saiu de todos os grupos, percebeu que o mundo não era formado apenas de sua bolha particular, mas sim de uma pluralidade, e tudo que ele compartilhava ou divulgava era responsabilidade dele, e tinha que responder por seus atos. Repassar informações falsas ou teorias da conspiração poderia muito bem afetar seriamente alguém, assim como o afetou naquele dia. Quem diria que Garibaldo era capaz de tamanha catarse?

• As opiniões expressas nesse texto não refletem, necessariamente, as do Portal de Jornalismo Iesb