População em situação de rua no DF e seus direitos: um desafio para o poder público

DF possui mais de 2 mil pessoas em situação de rua; garantir os direitos dessas pessoas é um desafio multidisciplinar

Giovana Daniela Ribeiro Alves

Postado em 04/07/2022

Distrito Federal: a unidade da federação com o maior PIB per capita do Brasil, de acordo com dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A Lei Orgânica do Distrito Federal – que é a “Constituição do DF” – estabelece, entre seus objetivos prioritários, a garantia e a promoção dos direitos assegurados na Constituição Federal e na Declaração Universal dos Direitos Humanos. A Constituição Federal de 1988 (CF/88) garante o direito à moradia. A Declaração Universal dos Direitos Humanos diz que “todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei”. Mas a realidade é contrastante com o que diz a nossa Constituição e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. 

De acordo com dados da Secretaria de Desenvolvimento Social do DF, há 2.252 pessoas em situação de rua no Distrito Federal. A assistência social, assim como a moradia, é um direito garantido pela Constituição. O artigo 203  é claro: a assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social. Além disso, a CF/88  aponta a  redução da vulnerabilidade socioeconômica de famílias em situação de pobreza ou de extrema pobreza como objetivo da assistência social. Nesse sentido, o poder público é obrigado a atuar nessa direção. Entretanto, apesar da obrigação legal, o Estado sozinho não garante esses direitos. As pessoas em situação de vulnerabilidade social, como as que estão em situação de rua, por exemplo, contam com a solidariedade do próximo para sobreviver.

Em um contexto de baixas temperaturas, o problema da falta de moradia se torna mais grave e cruel. De acordo com o Instituto Nacional de Meteorologia (INMET), em maio de 2022, o Distrito Federal registrou a temperatura mais baixa da sua história: 1,4ºC. Para atender a população mais vulnerável, o DF disponibiliza alguns centros de assistência. São eles: O Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), que tem como público alvo pessoas em situação de vulnerabilidade e risco social; o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), que tem como público alvo pessoas em situação de ameaça ou violação de direitos; e os Centros POP, que ofertam serviço especializado para as pessoas em situação de rua. 

Apesar de o Distrito Federal oferecer essa carteira de serviços para as pessoas em situação de rua e vulnerabilidade, o Estado não consegue suprir toda a demanda. Faltam recursos. Para efeito de comparação, de acordo com a Lei Orçamentária de 2021 – que define quais serão os gastos do governo no ano subsequente – o orçamento de investimento da Secretaria de Desenvolvimento Social – que é responsável pela execução de políticas públicas de assistência social – foi de 6,39 milhões de reais. A Secretaria de Segurança Pública, por outro lado, contou com mais de 89 milhões em investimentos. A quantidade de associações dedicadas a ajudar as pessoas mais vulneráveis também denunciam a existência dessa lacuna deixada por parte do poder público.   

ASSISTÊNCIA SOCIAL: Um direito de todo cidadão

 A assistência social é uma profissão interventiva, que atua na contradição entre o capital e o trabalho. Articuladores com o intuito de viabilizar os direitos das pessoas. É assim que a assistente social Litza Nery define a sua profissão. A assistência social busca a emancipação humana das pessoas em situação de vulnerabilidade. Uso de drogas e álcool, vínculos familiares e comunitários fragilizados, esses são os maiores desafios no acolhimento das pessoas em situação de rua, de acordo com Litza. “Essas pessoas são violentadas constantemente. Outro desafio é a precarização dos serviços que atendem essa população. Tudo isso pode ser resolvido com serviço de qualidade que ofereça boas condições de trabalho e capacitação dos profissionais”, destaca a assistente social. 

 “No Brasil, ainda há uma concepção muito meritocrática em relação as pessoas em situação de rua. Espera-se que a pessoa ‘saia da droga’; depois restabeleça vínculo familiar; consiga um emprego, casa e educação. Como se fosse uma escadinha. Em outros países, como Portugal, por exemplo, adota-se outra concepção. Uma das primeiras coisas que deve ser ofertada à pessoa em situação de rua é a habitação. Com o apoio de uma equipe multiprofissional, a pessoa pode conseguir se restabelecer e conseguir um emprego. Essa concepção, porém, está fragilizada por conta do contexto político do Brasil”.

De acordo com a advogada Jozely Lima, as pessoas em situação de vulnerabilidade são titulares de todos os direitos fundamentais estabelecidos na Constituição Federal de 1988. “A concretização desses direitos, no entanto, depende de variáveis políticas e econômicas”, ressalta Jozely. A advogada aponta que o papel do Estado é garantir esses direitos por meio de políticas de assistência social. “Em 2009 o Brasil instituiu a Política Nacional Para a População em Situação de Rua. Porém, garantir os direitos dessas pessoas nunca deixou de ser um desafio”, explica Lima.

“Para pensar em política pública, é necessário analisar o contexto. Estamos em contexto de avanço neoliberal, neofascista e neoconservador. Isso tudo interfere nas políticas públicas. A população vulnerável e em situação de rua é extremamente invisibilizada. Só é vista quando incomoda. O orçamento da Política Nacional para a População em Situação de Rua é extremamente reduzido” desabafa a assistente social. Litze também destaca que não há como pensar política pública como ‘uma política só’. As pessoas têm múltiplas necessidades. O Estado muitas vezes trabalha com políticas assistencialistas, que tiram a responsabilidade da pessoa e transfere para ONGs e para sociedade civil. “ONG e sociedade civil não garantem direito nem tiram a pessoa da rua. É necessário atacar a estrutura do problema. E isso só o Estado pode fazer”, afirma Litza. 

O atendimento humanizado e universalizado é um dos princípios da Política Nacional Para a População em Situação de Rua. E a promoção dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais é uma das diretrizes desta política. Nesse sentido, a assistente social aponta que é necessário que haja um fortalecimento  do controle social.

 “A população consegue mais visibilidade à medida em que se organiza. É necessário pressionar o poder público. Essa é a via que historicamente funciona. A Política Nacional para a População em Situação de Rua nasceu da pressão popular. O Estado por si só não tem interesse em garantir direitos universais de forma digna. A população precisa gritar para ter a garantia dos seus direitos básicos”

As ruas como lar: beirando desafios e a solidão

Grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional: este é, em resumo, o conceito de pessoa em situação de rua. Os dados mais recentes do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) apontam que há mais de 222 mil pessoas em situação de rua no Brasil. 

Paulo Silva*, de 40 anos, conta que apesar de morar na rua, essa condição é passageira, ele mora com a família, porém recorre a períodos nas ruas quando recai no uso de drogas. Dos desafios de morar na rua, ele destaca que o maior deles é a comida. De acordo com uma pesquisa da FGV Social, que analisa dados do Gallup World Poll, o percentual de brasileiros que não teve dinheiro para se alimentar em algum momento dos últimos 12 meses subiu de 30% em 2019 para 36% em 2021. Este número é um recorde desde o início da medição desses dados, em 2006.

“Tem muita gente aqui na rua que ficam 4 dias em uso de drogas, quando eles param e a fome surge, eles reviram latas de lixo à procura de comida. Eu sei disso porque eu mesmo já fiz isso, já revirei latas de lixo para comer”. De acordo com a pesquisa da FGV Social, a insegurança alimentar, durante a pandemia, aumentou em 22 pontos percentuais entre os 20% mais pobres do Brasil. 

Apesar de não optar por dormir em abrigos e preferir dormir em um papelão nas calçadas da rodoviária, ele conta das dificuldades de sobrevivência, da violência e da ausência de regras. “Aqui tem sempre um querendo ‘arrancar a cabeça do outro’. Existem pessoas que querem levar até o pano que você veste para trocar por drogas”.

Para Paulo Silva*, a solução para a situação que ele vive e que vê diariamente de outros moradores das ruas, começa com o oferecimento de um tratamento humanizado, diferente dos oferecidos nas ruas com abordagens que muitas vezes são agressivas e com pouco respeito pela situação vulnerável em que eles se encontram. “Eu ainda não consegui mudar minha vida, mas eu quero muito.”

Além da fome e do frio, outra dificuldade enfrentada pelas pessoas em situação de rua é o acesso a medicamentos. “O pessoal que entrega doações ajuda com mantimentos, mas não com medicamentos. Muitas pessoas não querem ajudar com dinheiro”, lamenta João Lopes*

Voluntariado em ação

Diante de um problema social não tão distante da nossa realidade, existem pessoas que se dispõem a fazer o que é possível para arrecadar doações, alimentar e dedicar um pouco de atenção para essas pessoas que carecem de visibilidade e de muitas vezes, afeto. Esse é o caso de Fernanda Lopes, 32 anos, que durante a pandemia se pegou refletindo sobre como as pessoas que se encontravam em situação de rua estavam conseguindo suprir suas necessidades mais básicas, visto que a maioria da população estava submetida a quarentena. A partir disso, ela decidiu por conta própria fazer a diferença e ajudar da maneira que podia, arrecadando doações e distribuindo alimento para o que precisavam. “Antes de procurar o que me motiva, eu preciso ter a consciência de que o que eu faço é o mínimo. Contudo, saber que o pouco é muito pra quem nada tem, me faz querer alcançar mais pessoas, e ver no que é simples, cada gesto de gratidão, cada um à sua maneira”, conta a voluntária.

Sair de casa em rumo a fazer o bem é ir de encontro a uma realidade que choca e traz grandes ensinamentos, durante as ações Fernanda diz ser perceptível que muitas vezes a necessidade de atenção e afeto é até maior que a de se alimentar. Ela explica que gestos simples de cuidado e de disponibilidade para escutar a existência de uma história por trás de cada uma daquelas pessoas, fazem parte do que deve ser um trabalho voluntário, para além das necessidades básicas o afeto é também importante.

Os desafios são grandes, vão desde encontrar pessoas realmente dispostas a se entregar à causa até os cuidados com a segurança pessoal. Ela salienta que é necessário um certo cuidado e compreensão de que muitos estão em situação de adicção e que precisam sustentar seus vícios, diante dessa situação é preciso ter cautela pois torna os voluntários vulneráveis. Uma outra dificuldade encontrada é aprender a distanciar o emocional para que seja possível continuar o trabalho.

“Tem um fator muito forte ainda dentro dessa temática, que é o envolvimento emocional. Lidar com as diversas realidades, ouvir tantas histórias e não se deixar envolver, é o que garante a volta na ação seguinte. Ficar comovido com o que se ouve e o que se vê é inevitável, mas quando ultrapassa essa linha tênue com o envolvimento, o servir se torna doloroso. Infelizmente não é possível abraçar o mundo e resolver cada história, reconciliar pai e filho, intermediar perdão ou até mesmo proporcionar uma reabilitação. É um exercício em que a consciência tem que estar plena e certa que apesar de pouco, já faço a diferença.”, afirma Fernanda.

Sarah Campos, 33, é voluntária há 5 anos no Grupo Acolher, grupo de cerca de 10 voluntários que se reúnem para fazer ações e ajudar instituições que não contam com ajudas governamentais. Dentre as dificuldades do voluntariado, Sarah destaca como principal a de conseguir doadores. “São muitas as dificuldades, mas acho que uma das maiores é conseguir atingir uma maior quantidade de doadores, é conscientizar as pessoas que tem muita gente que quer sim trabalhar, que quer sim estudar, mas o Estado não consegue suprir, e é aí que a gente entra, tentando suprir o mínimo”.

(*) Nome fictício