Lei de Cotas transforma a educação no Brasil
Em 2025, mais de 26 mil candidatos com perfil de cotistas do Sisu foram aprovados na ampla concorrência
Postado em 30/04/2025

Aprovada em 2012 e atualizada em 2023, a Lei de Cotas — originalmente Lei nº 12.711/2012, agora Lei nº 14.723/2023 — representa um marco na luta por equidade racial e social no Brasil. Criada para vigorar inicialmente por uma década, a política pública garante a reserva de vagas em instituições federais de ensino superior e técnico para estudantes da rede pública, levando em consideração critérios étnico-raciais e socioeconômicos.
Ao longo dos últimos anos, a medida transformou o perfil das universidades brasileiras e ajudou a redefinir o entendimento público sobre ações afirmativas. Ainda assim, o debate segue atual: como equilibrar a reparação histórica com os desafios de permanência e inclusão no presente?
Reparação histórica e inclusão real
Matilde Ribeiro, professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) e ex-ministra da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (2003), defende que a Lei de Cotas é uma ferramenta crucial no enfrentamento das desigualdades herdadas da escravidão. “A abolição formal da escravidão aconteceu há mais de 137 anos, mas a população negra segue em condição de vulnerabilidade. Na verdade, ela é vulnerabilizada. (…) As cotas abriram caminho para brasileiros negros, indígenas e pobres de todas as regiões do país. Hoje, esse número quadruplicou.”
De acordo com o Ministério da Educação (MEC), a inclusão na educação superior aumentou 124% pelo Sisu. Em 2025, mais de 26 mil candidatos com perfil de cotistas do Sistema de Seleção Unificada foram aprovados na ampla concorrência, enquanto em 2024 foram 11.806. Quanto à inclusão de quilombolas, o aumento foi de 41%. Em 2024, foram aprovados 1.775 no Sisu e, em 2025, 2.505. Só em Medicina e Direito, dois dos cursos mais concorridos, mais de 330 estudantes quilombolas foram aprovados nos últimos dois anos.

Esse caminho foi trilhado por Namíbia Yakini, jornalista negra de 24 anos, formada pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), que ingressou na universidade por meio das cotas. “O processo só foi mais tranquilo porque fiz um cursinho social. Se fosse apenas com o ensino médio da escola pública, eu não teria conseguido. Entrei na universidade pela lista de espera, através da Lei de Cotas.”
Corpos que transformam o espaço acadêmico
Matilde destaca que os dados desconstroem a ideia de que cotas afetam a qualidade do ensino: cotistas frequentemente têm desempenho igual ou superior à média. Namíbia Yakini, com sua vivência na UFRB, reforça essa visão, destacando a importância da presença de estudantes negros e indígenas no ambiente acadêmico. “Qualquer corpo negro ou indígena com consciência das reparações históricas transforma o ambiente acadêmico. Enquanto muitos professores tiveram privilégios para estudar e viajar, a gente dividia o tempo entre trabalho, estudo, cuidado com a família e ainda precisava provar nosso valor o tempo todo.”
Namíbia passou por situações de racismo velado e até escancarado, inclusive de professores. “Fomos constantemente obrigados a mostrar que nossas histórias de vida validam a existência das políticas afirmativas”.
A permanência e o papel do Estado
A atualização da Lei em 2023 ampliou a abrangência para programas de pós-graduação, incluiu grupos como quilombolas e reforçou a responsabilidade do Estado em conectar a formação acadêmica com o mercado de trabalho. Matilde Ribeiro sublinha que, para que as cotas cumpram sua função, é fundamental garantir a permanência dos estudantes nas universidades. “Não basta garantir a entrada. É preciso assegurar políticas de permanência, bolsas, apoio psicológico, capacitação. E também investir na cultura, na mídia e na educação básica.”
Namíbia Yakini concorda, ressaltando que sem os auxílios oferecidos pelo governo, muitos de seus colegas não teriam conseguido concluir a graduação. “Os auxílios de moradia e projetos de pesquisa fizeram muitos colegas chegarem até o fim. Sem esse apoio, hoje não teríamos tantos pesquisadores com conhecimento de causa. Um trabalho feito por alguém da comunidade quilombola ou de uma aldeia indígena tem uma sensibilidade única. É isso que a universidade ganha ao abrir as portas com as cotas.”
Resistência e enfrentamento
O senador Paulo Paim, uma das maiores vozes políticas na defesa das cotas no Brasil, lembra das resistências enfrentadas ao longo da sua trajetória para garantir a aprovação da Lei de Cotas e do Estatuto da Igualdade Racial. “Quando defendi a constitucionalidade das cotas no STF, era o único senador negro. Houve quem dissesse que mulheres negras gostavam de ser violentadas na escravidão. Perguntei: você gostaria que sua filha fosse violentada? O silêncio foi total. E vencemos por 10 a 0.”
Para além do acesso, a permanência e a representatividade continuam sendo pontos centrais da discussão. Paim defende que as cotas também devem alcançar outros espaços, como o Parlamento. “Ainda hoje podemos contar nos dedos quantos senadores negros existem. E isso num país de maioria negra.”