Blocos afros: resistência, educação e identidade negra em Salvador
Blocos ocupam as ruas com consciência, preservam a ancestralidade e transformam vidas por meio da arte e da educação
Postado em 30/04/2025

– Foto: Divulgação/SecultBA
Com tambores que ecoam resistência, orgulho e ancestralidade, os blocos afros conquistaram não apenas espaço no Carnaval de Salvador, mas também um lugar definitivo na história da cultura brasileira. Em especial, no circuito Osmar (bairro do Campo Grande), os desfiles desses blocos são mais do que espetáculo, são manifestações políticas, sociais e educativas.
O Ilê Aiyê, fundado em 1974, em Salvador, no bairro da Liberdade, no Curuzu, em plena ditadura militar, foi o primeiro bloco afro do Brasil. Enfrentando desde o início o preconceito racial e o apagamento cultural, tornou-se símbolo de luta e inspiração para outros grupos como Olodum, Timbalada e Muzenza. O bairro da Liberdade, onde o Ilê nasceu, abriga o maior número de afrodescendentes fora da África, e ainda hoje é o palco de resistência e celebração dessa herança cultural.
“Os blocos afros são mais do que uma manifestação cultural, são fontes de pertencimento e resistência”, afirma Stephanie Ingrid, Princesa do Ilê Aiyê em 2025. “Eles mostram pra juventude negra das periferias que temos uma história linda, cheia de força. O Ilê faz isso com música, dança, estética e educação. Transforma autoestima em arma de luta.”
Essa potência cultural é sustentada também por políticas públicas como o Programa Ouro Negro, da Secretaria de Cultura da Bahia (SecultBA). Em 2025, o programa bateu recorde de investimento. Foram R$ 15 milhões destinados a 112 projetos, entre blocos afro, afoxés, grupos de samba, reggae e blocos de índio. Desses, 76 são de Salvador.
Bloco Ilê Aiyê no Curuzu – Foto: SecultBA Saída do bloco afro Olodum no Carnaval de 2023 – Foto: Antônio Queirós/GOVBA Princesa do Ilê Aiyê 2025, Stephanie Ingrid – Foto: Arquivo pessoal
“O Ouro Negro preserva e valoriza essas manifestações, promovendo desfiles com trajes tradicionais e garantindo a participação da juventude, que herda esse legado com orgulho”, explica a SecultBA. Mais do que Carnaval, os blocos atuam o ano todo com projetos sociais, promovendo educação, qualificação profissional e empoderamento nas comunidades.
Mas manter essa chama acesa não é simples. Sandro Teles, produtor musical do Ilê Aiyê, destaca os desafios da sobrevivência dessas entidades. “O principal obstáculo é alcançar a autossuficiência financeira. Esses blocos fazem o que o Estado deveria fazer: educam, qualificam e promovem cultura de forma gratuita. E ainda assim, têm dificuldade de se manter.”
Segundo Sandro, a iniciativa privada ainda resiste a apoiar os projetos socioeducacionais. “Há mais interesse em eventos com visibilidade, como o Carnaval, mas quase nenhum em financiar escolas como a Mãe Hilda ou a Banda Erê, que estava parada desde 2020.”
Ele alerta que o apagamento de outras entidades também é um problema. “Precisamos entender que, quando se fala em bloco afro, não é só Ilê Aiyê, Olodum e Malê Debalê. O Muzenza, por exemplo, está em vias de extinção por falta de apoio, e há muitos outros na mesma situação. É inaceitável que uma cidade da música não tenha sequer um Museu dos Blocos Afros e Afoxés. Estamos falando de uma música que, além de entreter, educa — uma ferramenta pedagógica poderosíssima.”
Mesmo com esses entraves, a força dos blocos afros ultrapassa fronteiras. “Hoje temos grupos de percussão e dança afro espalhados pelo mundo. Salvador virou a Meca da percussão afro. A globalização levou nossa música, sem tirar nossa essência”, diz Sandro.
E essa essência é resistência. “Ser Princesa do Ilê é carregar no corpo e na alma a força de um povo que não se curva. Resistimos dançando, cantando, ensinando. Nosso tambor nunca se cala”, reforça Stephanie.
Ainda assim, o preconceito estrutural persiste. “Os blocos são aplaudidos no Carnaval e esquecidos no resto do ano. O poder público precisa sair do discurso e apoiar de verdade. A sociedade baiana tem que parar de nos enxergar como folclore e entender que somos política viva”, dispara Stephanie, eleita em 2025 a princesa do primeiro bloco afro de Salvador.
Sandro compartilha do sentimento: “As rádios de Salvador não tocam nossas músicas. Se não fosse o programa ‘Tambores da Liberdade’, criado em 2000, não teríamos espaço algum. Por que isso? Porque é uma música que educa, que eleva a autoestima — e isso incomoda.”
O Ilê Aiyê e outros blocos seguem firmes, com orgulho de suas raízes, transmitindo saberes, identidade e força. “A contribuição pedagógica está em cada letra de música, em cada aula, em cada oficina. É um trabalho de formiguinha, mas de transformação profunda”, diz Sandro, que conclui sua fala com um verso da música “Força Afrobrasileira”, de Marquinhos Marques, Jorge Garcia e Ed Junior: “Não há vitória, quando a luta não é justa.”
E para as meninas negras da periferia que sonham ocupar espaços como o dela, Stephanie deixa uma mensagem poderosa:
“Acredite no seu axé. Você carrega a força de um continente. Sua cor é luz, sua voz é forte, e o seu lugar é onde você quiser brilhar.”