Anos eleitorais reacendem debate sobre aborto no país
Disputa política sobre o aborto contribui para desinformação, estigmatização e dificuldades no acesso a direitos já garantidos por lei.
Postado em 27/05/2025
A cada novo ciclo eleitoral no Brasil, o aborto volta a ocupar o centro do debate político. Mesmo sem avanços significativos na legislação, o assunto se mantém como uma das pautas mais mobilizadoras, principalmente por sua carga moral e ideológica. Candidatos e partidos utilizam o tema para reforçar sua identidade política. A estratégia, embora repetida, continua eficaz: gera engajamento nas redes, movimenta a base eleitoral e ofusca debates mais técnicos sobre saúde pública e direitos reprodutivos.
De acordo com dados do Ministério da Saúde, os números de aborto legal pelo SUS cresceram 71% nos últimos cinco anos. Só entre janeiro e abril de 2024, foram 24,4 mil casos. Mesmo com esse aumento, o procedimento continua legalmente restrito a três situações: gravidez resultante de estupro, risco à vida da gestante e anencefalia do feto.
Segundo o cientista político João Felipe Marques, o apelo do tema está em sua simplicidade emocional. “ As pessoas podem não ter opiniões específicas sobre economia ou política, mas algo que faz parte da vida de todos é a maternidade e o conceito de concepção”, explica. Isso faz com que o tema desperte posicionamentos em praticamente todo o eleitorado, influenciando o voto mesmo em eleições para cargos que não têm poder direto sobre a questão.

João ressalta ainda que políticos e especialistas em campanhas eleitorais sabem da força mobilizadora do tema e frequentemente o utilizam estrategicamente em momentos de grande exposição, como durante debates na TV, inserções partidárias ou decisões importantes no Supremo Tribunal Federal (STF).
Essa dinâmica é potencializada por discursos que, nas palavras do cientista político, reduzem a mulher ao papel de gestante e são difundidos em redes religiosas, rádios e aplicativos de mensagem. Ao vincular o aborto à ideia de “tirar uma vida”, esses discursos reforçam estigmas sociais e silenciam discussões mais profundas sobre saúde reprodutiva.
A advogada Raylla Castro aponta que a legislação atual, ao permitir o aborto apenas em casos muito específicos, cria brechas para manipulação política. “Um ambiente de ambiguidade jurídica e social permite que atores políticos explorem o tema sob diferentes óticas — ora como ameaça à moral, ora como omissão do Estado —, mesmo quando suas propostas extrapolam as competências legais de seus cargos”, afirma.
Além disso, ela destaca que muitos projetos defendidos em campanha afrontam diretamente decisões do STF ou violam a Constituição, gerando confusão e desinformação entre os eleitores.
Silenciamento, estratégia eleitoral e resistência social
Apesar da presença constante do tema nas campanhas, grande parte dos políticos evita se posicionar de forma clara. Isso se deve ao receio de perder apoio de segmentos importantes do eleitorado, como grupos religiosos ou setores progressistas. Além disso, há uma preocupação sobre o risco de perder apoio de parte do eleitorado, que pode simplesmente desistir de votar em um candidato com base apenas nesse posicionamento.
“A frequente moralização da política pode enfraquecer o debate público e tornar inviável a construção de consensos legislativos, já que os argumentos tendem a ser binários e pouco técnicos, baseados mais em crenças pessoais do que em evidências ou diretrizes internacionais de saúde pública”, afirma João.
A presidente do Movimento Brasil Sem Aborto, Lenise Garcia, reconhece que o tema é sensível, mas defende que candidatos devem ser claros sobre suas posições. “Eu acho que é importante que o parlamentar não seja morfo, não esconda da população o seu pensamento, porque justamente o nosso voto vai ser melhor se o candidato é claro em relação ao seu próprio pensamento.”, argumenta.
Segundo ela, há parlamentares verdadeiramente comprometidos com a pauta antiaborto, embora também existam os que exploram o tema apenas para angariar votos durante a campanha.

Na perspectiva de Raylla, a politização do aborto contribui para a desinformação e dificulta o acesso das mulheres a direitos já garantidos por lei. Segundo a advogada, quando o aborto é tratado como um tabu ou usado como arma na disputa política, isso acaba intimidando os profissionais de saúde e afastando as mulheres dos serviços de atendimento, por medo ou vergonha. Essa realidade compromete diretamente a eficácia das políticas públicas e dificulta o acesso à justiça reprodutiva.
O Projeto de Lei 1.904/2024 é um exemplo de como parlamentares exploram o assunto para reafirmar suas posições. Aprovado em regime de urgência pela Câmara dos Deputados, ele propõe equiparar o aborto a homicídio quando realizados acima de 22 semanas de gestação — mesmo em casos de estupro. Para os movimentos feministas e defensores dos direitos humanos, essa proposta representa um retrocesso nos direitos das mulheres e ignora completamente os contextos de violência e vulnerabilidade que muitas enfrentam.

O debate também é contaminado por preconceitos de gênero. “Machismo e conservadorismo estruturam uma narrativa que infantiliza a mulher e nega sua autonomia sobre o próprio corpo”, afirma Raylla. Essa visão limita a formulação de políticas públicas baseadas em evidências e alimenta um ciclo de desinformação, medo e estigmatização.
Para João, o uso do tema em campanhas pode tirar espaço de discussões mais complexas sobre saúde pública, educação sexual e desigualdade de gênero, que são temas estruturantes ligados diretamente à pauta do aborto.