População de rua cresce 19,8% no DF e demanda atendimento psicossocial
Segundo o DF Legal, foram realizadas 214 operações nos últimos cinco anos: das 1.260 pessoas abordadas apenas 22 aceitaram acolhimento.
Postado em 04/06/2025
Em meio ao frio, à fome e à insegurança, uma necessidade silenciosa persiste na vida das pessoas em situação de rua: ser ouvido. Cercada de estigmas e negligência, essa população não sofre apenas com a ausência de moradia, mas também com a escassez de escuta ativa, de acolhimento e de reconhecimento da própria história.
De acordo com o 2º Censo Distrital da População em Situação de Rua, atualmente há 3.521 pessoas vivendo nas ruas do Distrito Federal, um aumento de 19,8% em relação a 2022. A pesquisa também revela um crescimento no número de pessoas vivendo efetivamente nas ruas, em contraste com a diminuição de presenças em serviços de acolhimento.
A maioria dessa população não nasceu no Distrito Federal, sendo a migração o principal fator associado ao aumento. Entre os motivos mais recorrentes para a vinda à capital estão a busca por emprego, o acompanhamento de familiares e a realização de tratamentos de saúde.
Avenidas que contam histórias
Amanda Lopes veio para Brasília com apenas um ano de idade. Dos seus 31 anos de vida, 25 foram nas ruas. Mãe de quatro filhos com os quais não convive, ela frequenta o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) há pelo menos uma década para tratar da depressão. “Já fiquei internada por 15 dias. Sou bem tratada”, conta Amanda sobre o atendimento no Centro.
Aos 70 anos, Artur Godin chegou em Brasília ainda criança, construiu uma vida com família, filhas e estabilidade. Hoje, sozinho, vive pelas ruas em Taguatinga, e conta com o Centro Pop para se alimentar e receber apoio emocional. Godin relata que enfrenta episódios de tristeza profunda, mas tenta manter a rotina de cuidados. Prefere não buscar por atendimento no CAPS e aguarda, com esperança, uma vaga em um abrigo.

Alexandre Armindo, 48 anos, mora nas ruas há cinco anos, desde que perdeu a mãe no dia do próprio aniversário. “Já tinha perdido meu pai em 2017 e minha filha em 2006. Isso foi acumulando dentro da minha cabeça”, relata. Ele sobrevive com um auxílio do governo, mas acredita que a assistência precisa ir além do dinheiro: “O governo dá um auxílio e mais nada, não dá atenção. Deveriam ajudar com conversa, psicólogo, assistência social. Não virar as costas. Ouvir o que o morador de rua tem pra falar. Isso é essencial: escutar o que levou ele até ali, o que ele precisa”
“Estamos no abandono. E pra falar a verdade, muitos deixam de ser uma boa pessoa e se torna um vilão. Começa a roubar, a extorquir, a usar coisa errada. Se deixa levar. Mas muitos só precisam de atenção”, completa Armindo.

Armindo está há um mês acolhido na Vila Kairos, antiga Casa Santo André, onde vive com outras 17 pessoas — entre elas cadeirantes e ex-moradores de rua. Segundo o coordenador da instituição, Nivaldo Oliveira, os acolhidos recebem apoio semanal de profissionais dos CAPS, incluindo atendimento psicológico e psiquiátrico.
Para Oliveira, no entanto, o modelo atual dos Centros nem sempre tem a profundidade necessária para de fato ajudar. “O tratamento aberto não funciona. O cara escuta uma palestra e volta para a rua. A comunidade terapêutica é onde ele se afasta do vício, mesmo que não queira. Precisa de tempo, apoio e contenção”, defende.
Ele relata que o vício em drogas e álcool é uma das principais causas que levam as pessoas às ruas, e também um dos maiores obstáculos para sair delas. Por isso, acredita que o cuidado psicossocial precisa ir além do atendimento pontual, oferecendo espaços de acolhimento prolongado, com estrutura, abordagem terapêutica contínua e, acima de tudo, humanidade. “Eles precisam de amor e de um lugar seguro. Escutar é importante, mas só escutar não resolve. A rua destrói a saúde mental, e o que mais falta é acompanhamento real”, completa.
Papel dos órgãos governamentais
Em nota, a Secretaria de Saúde do Distrito Federal destacou que os CAPS desempenham papel central na atenção à saúde mental dessa população. De 2017 a 2024, foram realizados mais de 1,5 milhão de atendimentos — um crescimento de 155% no período. Apesar disso, não há dados específicos sobre atendimentos voltados exclusivamente à população em situação de rua, mas o aumento expressivo na demanda geral por serviços de saúde mental evidencia a necessidade de ampliar o acesso e a cobertura desses atendimentos.
O atendimento nos CAPS é baseado em planos personalizados, construídos a partir das histórias e necessidades individuais. Isso fortalece a autoestima e a autonomia dos pacientes. No entanto, as equipes enfrentam diversos desafios: desde a desconfiança no sistema — muitas vezes fruto de traumas anteriores — até a instabilidade da vida nas ruas, que dificulta o acompanhamento contínuo. Soma-se a isso a escassez de recursos, limitações estruturais e até o preconceito institucional.
A Secretaria de Desenvolvimento Social destaca que o Distrito Federal foi pioneiro na criação do Plano Distrital para a População em Situação de Rua, que integra ações de diversos órgãos com o objetivo de oferecer acolhimento, acesso a benefícios e encaminhamentos nos locais de maior concentração dessa população. O plano contempla áreas como geração de emprego e renda, acesso à justiça, saúde e programas de habitação para pessoas de baixa renda, entre outras.
Segundo o DF Legal, de 2020 até agora, foram realizadas 214 operações, visitando 783 locais e abordando 1.260 pessoas — das quais apenas 22 aceitaram acolhimento. O número revela a urgência de políticas mais sensíveis, que considerem a escuta como ponto de partida.
Outras iniciativas em curso incluem:
- Decreto que reserva 15 cargos em órgãos de Direitos Humanos para pessoas em situação de rua;
- Ampliação de até 2 mil vagas de acolhimento, incluindo abrigos noturnos inéditos no DF;
- Expansão do programa Consultório na Rua, com mais de 70 profissionais atuando de forma itinerante em todo o território;
- Lançamento do Plano de Ação para a Efetivação da Política Distrital para a População em Situação de Rua, focado na ampliação da rede de atendimento e qualificação do acolhimento.