Animais silvestres enfrentam ameaça invisível nas estradas brasileiras
Mais de 475 milhões de animais são atropelados anualmente no país; história da loba-guará Pequi escancara a urgência de políticas públicas efetivas.
Postado em 14/07/2025
Todos os dias, milhares de animais silvestres morrem em silêncio nas rodovias brasileiras. A estimativa do Centro Brasileiro de Estudos em Ecologia de Estradas (CBEE) da Universidade Federal de Lavras (UFLA), em Minas Gerais, é alarmante. Cerca de 475 milhões de animais são atropelados por ano em todo o país, sendo uma morte a cada 15 segundos.
Espécies como tamanduá-bandeira, jaguatirica, tatu-canastra e lobo-guará estão entre as mais afetadas, sobretudo na região Sudeste, responsável por 56% dos atropelamentos. No entanto, a dimensão real do impacto continua invisível aos olhos do poder público e de parte da sociedade.

Efeitos em cascata no equilíbrio ecológico
“O atropelamento de fauna leva milhões de animais a óbito. O impacto é severo, e isso afeta desde pequenos roedores até espécies de topo de cadeia como o lobo-guará ou a onça-pintada. A morte desses predadores pode desestabilizar todo o ecossistema”, explica o biólogo Carlos Eduardo Nóbrega.
Os atropelamentos não representam apenas perdas individuais. Eles desencadeiam efeitos em cascata, afetando toda a cadeia trófica. A ausência de predadores pode causar superpopulação de presas, que por sua vez atacam lavouras, desequilibrando o sistema ecológico e até impactando a economia.
“Quando você tem o atropelamento de um animal de topo de cadeia, o efeito dominó afeta desde outras espécies até o agronegócio. Isso porque há descontrole populacional de herbívoros que passam a invadir plantações”, alerta o biólogo.
A jornada de Pequi, a lobinha que conquistou o Cerrado
A morte da loba-guará Pequi, atropelada em uma rodovia em Goiás, gerou comoção e se tornou um símbolo da luta pela preservação da fauna brasileira. Sua trajetória de superação mobilizou profissionais, voluntários e instituições, e escancarou a fragilidade da vida silvestre diante da urbanização desordenada.
Resgatada ainda filhote após a morte da mãe, Pequi foi uma entre cinco irmãos acolhidos por diferentes instituições. Coube à ONG Jaguaracambé, que trabalha na conservação da biodiversidade do Cerrado, a missão de reabilitá-la. Durante dois anos, a loba recebeu alimentação com frutos típicos do Cerrado, passou por treinamentos para caçar e evitar contato humano, e foi acompanhada por uma equipe multidisciplinar.
Após o processo de aclimatação, Pequi foi devolvida à natureza por meio de uma soltura branda, o recinto onde vivia permaneceu aberto, com alimentos disponíveis, caso quisesse retornar. Mas não foi necessário, a loba se adaptou rapidamente, com monitoração por rádio-colar.
Poucos meses depois, no entanto, veio o atropelamento. O impacto foi devastador para quem acompanhava a jornada desde o início. A tragédia impulsionou audiências públicas, debates com órgãos ambientais e o surgimento de novas frentes de pesquisa.
“Foi como perder alguém da família. A Pequi nos mostrou que é possível reabilitar um animal, mas também nos escancarou a urgência de mudar o cenário das rodovias brasileiras”, afirma emocionada a médica veterinária e presidente da ONG, Ana Paula Nunes.
A ONG Jaguaracambé passou a atuar diretamente pela criação de passagens de fauna e ações de mitigação. Além disso, a história de Pequi virou documentário, ganhou destaque em projetos de educação ambiental e inspirou um livro infantil, Pequeno Cerrado Voador, que será lançado em parceria com a ONG Vida no Cerrado.
“Acredito que ela desempenhou muito bem o papel semeador do lobo-guará. Ela conseguiu semear uma plantinha de esperança na gente, da equipe, e em todas as pessoas que acompanhavam esse caso. Ela mostrou que é possível unir instituições e a população pela conservação da fauna”, conclui Ana Paula.
Medidas existem, mas falta vontade política
Mesmo com mais de 600 pontos críticos de atropelamento mapeados pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), as rodovias brasileiras carecem de infraestrutura adequada, como viadutos verdes, túneis e passagens suspensas. Além disso, falta fiscalização efetiva da velocidade dos veículos.
“A ausência de controle de velocidade nas estradas contribui diretamente para os atropelamentos. Isso poderia ser resolvido com radares fixos, patrulhamento e mais sinalização”, destaca Flavia Cantal, coordenadora da campanha “Desacelere pela Vida”.
Ela também relata que redutores de velocidade, como lombadas e sonorizadores, já evitaram acidentes com animais, segundo relatos de motoristas abordados pela equipe da campanha em blitz educativas realizadas em postos de gasolina.
Iniciativas como as da Jaguaracambé, da campanha Desacelere pela Vida e de pesquisadores da UnB têm demonstrado que é possível traçar estratégias eficazes para preservar a fauna silvestre. Mas o maior desafio segue sendo o desinteresse político e a falta de recursos.
“A resposta das autoridades em geral são insatisfatórias. A maioria dos gestores têm pouco interesse em levar adiante essas medidas de redução de atropelamento que acabam também melhorando a segurança viária das rodovias”, afirma Flavia.
