Casais LGBTQIA+ buscam assegurar a parentalidade na hora de registrar os filhos
Entre conquistas institucionais e preconceitos, casais lutam para que a lei reflita e inclua a diversidade familiar
Postado em 03/06/2025
O direito ao reconhecimento legal da parentalidade em casais homoafetivos tem avançado no Brasil, mas ainda encontra barreiras. Apesar de mudanças institucionais importantes, como a substituição dos campos “pai” e “mãe” por “filiação” nas certidões de nascimento desde 2018, casais LGBTQIA+ seguem enfrentando desafios jurídicos e sociais na hora de registrar seus filhos.
“Quando tratamos do registro de um filho no Brasil, a legislação aplicável é um tanto quanto antiga”, explica Deborah de Amorim, advogada especializada em Direito de Família. “A legislação em si é ampla, não define como deve ser tratado o registro dessa criança, mas também não diferencia. O que a gente percebe é uma prevalência da compreensão do Poder Judiciário e uma aplicação ampla e basilar da legislação.”
Milena Fernandes e Thaís Vargas formam um casal de professoras que decidiram ter um filho por fertilização in vitro, utilizando o método ROPA, no qual o óvulo de uma é gestado pela outra. Segundo Milena, a decisão pela maternidade veio logo no início do relacionamento. “Desde que começamos a namorar, a gente já sabia que isso ia chegar. E não, a gente não sabia que estava pronta. É mais uma questão de balancear o financeiro e o biológico”.

Thaís lembra como a questão biológica influenciou na decisão. “Eu já estava com 35 anos, que é meio que o limite da idade fértil da mulher. Então, também pelo biológico, a gente deu uma acelerada em procurar o médico de reprodução assistida”.
O processo de registro do filho foi facilitado por terem realizado o procedimento em uma clínica especializada. “A própria clínica emite uma declaração de que foi um processo de FIV com doador anônimo”, explica Milena. Ainda assim, as duas tomaram a decisão de oficializar o casamento civil para evitar riscos legais futuros.
Mesmo com os avanços no registro civil, alguns obstáculos persistem em sistemas institucionais. Um deles está no sistema de CPF do Governo Federal, que ainda exige os campos “mãe” e “pai” internamente. “É uma queixa recorrente nos grupos de duas mães”, comenta Milena, sobre a dificuldade de visualização correta dos dados parentais em sistemas oficiais.
Resistência e preconceito
Apesar de não terem vivenciado preconceitos explícitos durante a gestação, em parte por terem optado por uma equipe médica particular, o casal relata experiências de resistência institucional. No casamento civil, por exemplo, a juíza não aceitou modificar a fórmula tradicional de união. “Ela se referiu como: ‘Eu declaro marido e mulher’”, conta Thaís, demonstrando como até um momento de celebração pode ser atravessado por normas ultrapassadas e pelo preconceito.
A advogada Deborah também relata que acompanhou um casal que buscou o reconhecimento da união estável, e o tabelião, em diversas situações, exigiu documentos que, naturalmente, não são exigidos de um casal heteroafetivo. Ela destaca que “essas barreiras são amparadas única e exclusivamente nos conceitos e convicções pessoais daquela pessoa”.
Carla Marques, psicóloga especializada no atendimento ao público LGBTQIA+, aponta que o preconceito não nasce no momento da parentalidade, mas é uma herança social que impacta diretamente a saúde mental dessas famílias: “O tempo todo tentam vender um modelo social que não existe para ninguém, como se houvesse um único jeito de ser família.”
Um dos maiores desafios veio após o nascimento de Caetano, filho do casal, quando Milena precisou judicializar o direito à licença-maternidade como mãe não gestante. “Formalmente, só queriam me dar a licença-paternidade”, relata.
A situação foi agravada por uma decisão posterior do STF, que passou a restringir esse direito: “Agora, a não gestante só pode usufruir da licença extensa se a gestante não usufruir, estiver desempregada ou for autônoma”, explica Milena, que ainda enfrenta uma disputa judicial com a Secretaria de Educação.

“A jurisprudência caminha no sentido de proteger a dignidade das famílias homoafetivas, com certeza”, reforça Deborah. Mas também explica que, infelizmente, quando um casal precisa se submeter à aplicação dessa jurisprudência, é porque, de fato, já se viu oprimido e passou por algum tipo de abuso.
Apesar disso, ambas reconhecem o impacto positivo de sua história. “A gente está em contato com a formação de adolescentes. Somos professoras, e sempre que a gente pode, aproveitamos as oportunidades para dar o nosso ponto de vista, para falar da nossa experiência”, compartilha Thaís.
Para elas, há também uma militância que se manifesta pela simples existência: “O fato de estarmos ali com nosso filho, nos espaços que ocupamos, já pauta o assunto. Ele é o único aluno na turma que tem duas mães. Então isso vira uma reflexão constante, inclusive, de uma forma muito natural.”
O papel das instituições
Para a psicóloga Carla, o reconhecimento legal da parentalidade vai além da formalidade jurídica, é uma questão de dignidade humana. “Pagamos impostos, e, quando vamos pagá-los, nunca perguntam quais são as nossas orientações afetivas ou sexuais. Mas, onde se legislam as leis, o aspecto da legalidade e do reconhecimento não nos contempla.”
Deborah confirma que é realmente necessária uma regulação e que parte desse processo, sem dúvida, vem do Poder Judiciário, embora este só atue quando é devidamente provocado.
Milena alerta sobre a importância da documentação. “Se o registro de uma criança não tem o nome de uma das mães, eu não existo para a escola. Eu não vou poder buscar meu filho. Eu não vou poder ser acompanhante no hospital. Isso não é só sobre guarda, é sobre existir como mãe”.
A psicóloga destaca que o principal impacto emocional do reconhecimento é garantir que essas famílias possam existir com segurança. “Ter dois pais ou duas mães na certidão é algo óbvio para a criança que convive com essas pessoas diariamente. O problema está na sociedade, que insiste em dizer que aquela família, onde ela é amada e cuidada, tem algo de errado.”

O preconceito, segundo ela, pode gerar traumas profundos nas crianças. Todo preconceito está relacionado a uma violência psicológica. A criança, por sua vez, levará mais tempo para entender, inclusive, o nível da violência que sofreu. É uma questão que fere diretamente o Estatuto da Criança e do Adolescente.
“Os discursos conservadores, altamente replicados nos últimos anos, com certeza trazem um grande impacto na parentalidade dentro do conceito LGBTQIA+,” comenta a advogada Deborah. Ela afirma que, na prática, o discurso conservador tem, de fato, muitas aplicações e impactos, mas ressalta que é fundamental sempre se amparar no que determina a Constituição.
Carla também chama atenção para a importância da formação de profissionais que atuam com essas famílias. Ao fugir das prerrogativas legais de um conselho, o profissional fere o código de ética da sua profissão. Sendo assim, quando essas pessoas compreendem os aspectos legais envolvidos e respeitam o outro tal como ele é, conseguem pensar em questões que são extremamente relevantes para aquele indivíduo. “Ninguém merece palmas por fazer o mínimo, ninguém merece confete por respeitar uma pessoa que é diferente”, afirma.
É sobre direitos, não exceções
Dados da Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Brasil (Arpen-BR) apontam que, entre 2021 e 2023, 50.838 crianças foram registradas por casais homoafetivos. Já o Censo 2022 do IBGE mostra que os lares compostos por casais do mesmo sexo aumentaram de 59.957 em 2010 para 391.080 em 2022, um crescimento de mais de 550%.
Mesmo diante de avanços, Thaís ressalta que o amparo legal ainda não é suficiente. “Às vezes as pessoas são movidas muito por essa parte emocional e romântica, sendo que esse amparo legal ainda não é integral. É luta o tempo inteiro pelos direitos”.
Milena é categórica: “Não dá para romantizar. Tem uma parte que é, sim, a realização de muitos sonhos, mas é muita luta sistemática, organizada. A luta do indivíduo, a luta dos grupos sociais organizados para não retroceder.”
Deborah complementa que a correta atuação dos profissionais é, com certeza, essencial para que o Direito seja, de fato, uma ferramenta de inclusão. Ela também orienta que a principal ferramenta é o conhecimento. “Acredito que um casal que concebe a ideia da parentalidade deve, desde o momento do nascimento dessa ideia, buscar conhecimento e planejamento jurídico”.
A mensagem que Milena e Thaís deixam a outras famílias que desejam trilhar esse caminho é de esperança, mas com os pés no chão. “Busquem sempre se informar, nem que seja pela experiência de outras pessoas, mas para seguirem caminhos mais seguros possíveis. Para depois não se perceberem numa posição extremamente vulnerável, sendo que o Estado não vê aquela maternidade como legítima”.