Supersafra não impede alta dos alimentos e brasileiro paga mais
Mesmo com colheita recorde de grãos em 2025, preço da comida segue pressionado por exportações, logística deficiente e alta do dólar, atingindo em cheio o orçamento das famílias brasileiras.
Postado em 20/05/2025

Em 2025, o Brasil vive o paradoxal cenário de uma supersafra, com a maior colheita de grãos da história, e uma inflação alimentar que não dá trégua. Apesar da produção recorde de 315 milhões de toneladas de grãos, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), o preço dos alimentos continua subindo, impactando diretamente o bolso dos brasileiros. A alta é sentida tanto nas feiras quanto nos supermercados, onde produtos essenciais pesam mais a cada mês.
A explicação para esse fenômeno está longe de ser simples. A logística ineficiente, os custos elevados de transporte e a pressão das exportações, impulsionadas pelo dólar forte, são apenas algumas das variáveis que dificultam o alívio no mercado interno. A inflação desacelera em termos gerais, mas, para as famílias de baixa renda, os alimentos continuam a ser um fardo pesado.
A escalada silenciosa da feira
O aumento do custo de vida escancara a complexidade da cadeia alimentar no Brasil, onde a promessa de alívio no bolso, após uma grande safra, não se concretizou. No cenário atual, a inflação desacelera em termos gerais, mas os preços dos itens básicos permanecem em alta. Segundo o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) de abril de 2025, divulgado pelo IBGE, os alimentos acumulam alta de 4,2% nos últimos 12 meses, com destaque para arroz, batata e carnes.
A questão vai além da simples oferta e demanda. Para o economista e professor de marketing e estratégia Judson da Cruz Gurgel, da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA), a alta produção não reflete diretamente no preço final devido a uma série de fatores: “O aumento da oferta não reduz os preços por conta de custos logísticos, armazenagem e, principalmente, a forte demanda internacional”, explica.
Em abril, o Brasil bateu recorde de exportações de soja e milho. O cenário é complexo: o dólar valorizado torna vantajoso exportar, enquanto o mercado interno sofre com a falta de produtos no supermercado. “A logística também é um fator determinante. A produção é elevada, mas os custos para transportá-la são absurdos. Muitas vezes, o custo de transportar é maior que o valor do próprio produto”, observa Gurgel. E não são apenas as grandes exportações que pressionam a cadeia alimentar: a logística deficiente e os custos altos com armazenamento e transporte rodoviário também impactam diretamente o preço final dos produtos.
Carrinhos mais leves, feiras mais caras

Luciana Ribeiro, dona de casa de 42 anos, mora em Brasília e sente na pele as mudanças no mercado. Para ela, o que antes era uma rotina de compras sem muito planejamento, hoje exige mais atenção ao preço. “Antes eu comprava tudo o que precisava sem pensar muito, mas agora fico atenta a cada aumento. Eu compro menos, busco promoções e troco marcas. Não tem jeito, o orçamento não aguenta”, diz Luciana. Ela conta que o aumento no preço das carnes, em especial, afetou o cardápio da casa. “Carne era algo básico, mas agora é um luxo. Quando compro, é o mínimo possível, e ainda fico sem saber se vou conseguir garantir o arroz e feijão”, lamenta.
Essa mudança de comportamento é reflexo do que mostram as pesquisas: 78% dos consumidores alteraram seus hábitos de consumo em 2025, priorizando marcas mais baratas e comprando em menor quantidade, conforme levantamento do Procon-SP. E não é só Luciana que sente o impacto. Gabriela Gomes, dona de casa de 36 anos e moradora de Valparaíso de Goiás, tem a mesma percepção. “O que consigo comprar no começo do mês não dá para cobrir até o final, então estou sempre voltando para comprar mais, mas de forma mais controlada, com menos itens”, relata Gabriela.
“Agora, tenho que ir ao mercado toda semana. O que antes eu comprava em uma ida só, hoje não dura. Faço o máximo para não faltar, mas o preço dos alimentos está impossível”, conta Gabriela, que também fez adaptações no cardápio. “Tento substituir carne por frango ou ovo e olho lá. As verduras, então, são um luxo, quando consigo comprar”, afirma. A mudança nos hábitos alimentares reflete uma adaptação forçada à inflação, com as famílias priorizando o que é mais barato e reduzindo as compras de produtos essenciais.
Quem também observa essas mudanças de perto é Girleide Souza, 36 anos, gerente de um supermercado de médio porte em Valparaíso de Goiás. Segundo ela, os consumidores estão mais cautelosos e seletivos. “A gente vê claramente que os clientes estão levando menos produtos e optando por marcas mais baratas. Até mesmo promoções que antes lotavam o mercado agora têm retorno menor”, afirma.
Girleide nota ainda um aumento no uso de listas e na organização prévia das compras. “Muita gente chega com o valor contado e só compra o que está ali na lista. É diferente de outros tempos, quando havia mais liberdade para escolher. Agora, tudo é decidido na ponta do lápis”, conta. Ela explica que o setor supermercadista também sente os efeitos da inflação, principalmente nos altos custos logísticos e na instabilidade dos preços dos fornecedores, o que dificulta o planejamento e o repasse justo ao consumidor.
Inflação oficial não convence quem paga a conta
No entanto, a realidade vivida por Luciana e Gabriela não se reflete no índice oficial de inflação. O governo aponta para uma desaceleração da inflação, com o IPCA geral registrando alta de apenas 0,38% em abril. No entanto, para o economista David Deccache, especialista em macroeconomia, a inflação oficial nem sempre reflete o impacto direto no bolso dos consumidores. “A média dilui o peso dos itens essenciais dentro de um conjunto mais amplo. Para os itens de alimentação, que representam uma fatia significativa do orçamento das famílias, a alta continua a ser sentida com intensidade”, afirma Deccache.

O impacto é maior para as classes de menor renda. Segundo um estudo do Ipea, os alimentos representam até 30% dos gastos mensais das classes D e E, enquanto para as classes A e B, esse percentual não passa de 10%. Esse descompasso entre a inflação oficial e a realidade dos consumidores mais pobres é um reflexo de um Brasil onde a alimentação básica não é só um gasto, mas um peso constante sobre o orçamento das famílias.
O que pode ser feito?
Com medidas emergenciais sendo implementadas, o economista Judson vê algumas soluções imediatas, mas acredita que o problema é estrutural e exige ações mais profundas. “A isenção de tarifas de importação pode ser útil, mas se o produto já é abundante no mercado interno, a medida não resolve. O país precisa de uma política pública integrada que envolva produção local, logística e regulação eficiente”, diz ele.
Além disso, o reforço de estoques reguladores é uma proposta que ganha apoio entre os especialistas. Gurgel argumenta que “os estoques reguladores podem funcionar como um amortecedor. Quando o preço de um produto sobe demais, o governo pode liberar parte desses estoques e equilibrar o mercado, reduzindo a pressão sobre os preços.”
Ainda que medidas de alívio sejam tomadas, Deccache alerta para a necessidade de políticas públicas que ajudem a resolver as questões estruturais. “É preciso entender que o Brasil tem uma agricultura muito forte, mas precisa pensar em uma solução integrada para o mercado interno. Diversificar a produção, fortalecer a agricultura familiar e melhorar a logística são passos essenciais para garantir a segurança alimentar”, aponta Deccache.
Política, clima e o futuro da comida
Além dos fatores econômicos, os impactos das mudanças climáticas também estão cada vez mais visíveis. Mesmo com a supersafra, eventos climáticos extremos, como as enchentes no Sul do Brasil, afetaram diretamente a produção de arroz e de outras culturas essenciais. “Esses eventos são cada vez mais frequentes e intensos, o que exige uma resposta estruturada e integrada por parte do governo”, alerta Judson.
Para ele, o Brasil precisa repensar sua política agrícola, que atualmente privilegia a exportação em detrimento da produção voltada para o mercado interno. “Alimentação é um direito humano, não uma variável econômica. O agronegócio precisa ser repensado, com uma visão mais equilibrada entre atender o mercado interno e as exportações”, afirma.
O caminho, segundo Deccache, passa por um modelo de produção mais sustentável e diversificado. “O Brasil tem todo o potencial para ser uma potência agroalimentar interna. Mas para isso, precisa fortalecer a produção local, investir em cadeias de abastecimento mais eficientes e trabalhar para garantir que os alimentos cheguem às mesas de todos os brasileiros”, conclui o economista.