Artista do Distrito Federal transforma sucata em obras de arte

Guiga Nery encontrou na arte o ativismo ambiental e reune estruturas que combinam crítica social e estética

Beatriz Fagundes

Postado em 09/07/2025

Segundo o Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil 2024, o Brasil gerou cerca de 81 milhões de toneladas de resíduos sólidos urbanos, em 2023. Boa parte desse volume, quase 6 milhões de toneladas, sequer chegou a ser coletada. São materiais que, descartados nas ruas, lixões e terrenos baldios, compõem o retrato cotidiano de um país que consome demais e reaproveita de menos.

Mas o que é rejeito para muitos vira potência criativa nas mãos de Guiga Nery, que transforma lixo em obras de arte na Oficina Sucata. A partir de materiais coletados em ferros-velhos das regiões de Sobradinho II e Estrutural, no Distrito Federal, ele constrói estruturas e mobiliários que mesclam crítica social, estética e reflexão ecológica. “A ideia surgiu de pesquisas acadêmicas e da observação dos fluxos de recursos naturais e descartes nas infraestruturas urbanas. Busco conectar a escala da casa à escala do território”, afirma.

Guiga utiliza materiais descartados para criar peças que conectam arte e consciência ambiental (Foto/ Créditos: arquivo pessoal)

Para Guiga, o trabalho com resíduos vai além de um rótulo como “arte sustentável”. Ele se vê inserido em uma rede viva e múltipla de cosmopercepções, que integram natureza, tempo e memória, e que têm como principal referência política o movimento nacional dos catadores. “Falar de reciclagem é falar da atuação dessa categoria. São eles o maior movimento organizado nesse sentido no Brasil”.

Essa relação entre arte e reciclagem é analisada também pela pesquisadora Marta Pimenta Velloso no artigo “Da produção do lixo à transformação do resto”. Ela mostra como artistas e catadores compartilham uma função simbólica: “enquanto os catadores devolvem dignidade ao que é rejeitado, os artistas devolvem sentido e nomeiam o resto como arte”.

Arte que provoca e educa

Nas palavras de Guiga, suas obras não têm como único foco a estética, são formas de atravessar tempo, espaço e matéria. “Resgato significâncias passadas para pensar novos usos com base nas condições de vida presente. Tento fomentar reflexões sobre novas formas de integração com a natureza e gestão dos nossos recursos e descartes”.

Formado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de Brasília (UnB), a atuação de Guiga também já passou por projetos sociais e mutirões acadêmicos, embora ele reconheça a baixa demanda por atividades educativas no campo da sustentabilidade. “Já atuei organizando mutirões na academia e projetos via extensão universitária. Mas oficinas sobre minhas práticas nunca ofertei. Existe pouca demanda para educação ambiental, muita gente ainda não entende a relevância da reciclagem”.

Para ele, cada obra carrega uma parte de sua visão de mundo, e não há uma única peça mais especial. “Não associo minhas obras apenas à reciclagem, mas à nossa forma de vida como um todo. Cada uma expressa minha percepção do mundo”.

Entre referências e resistências

Inspirado politicamente pelo movimento dos catadores e pelas formas de vida nas periferias urbanas, Guiga vê no cotidiano das populações de baixa renda exemplos reais de integração entre reuso, sustentabilidade e dignidade. “A reciclagem está no cotidiano das periferias. É o que me motiva a continuar”.

Artisticamente, ele reconhece influências fragmentadas: “Minhas referências são dissolvidas em diferentes vertentes. Me inspiro em artesãos, no Arquivo de Salvador e em pessoas que trabalham com reciclagem têxtil, mas tento atravessar vários temas a partir do que faço”.

Ao refletir sobre a relação entre arte, consumo e meio ambiente no Brasil, Guiga é direto: “A desigualdade histórica e o ataque às minorias dificultam o acesso e a valorização da arte e da cultura. Boa parte da população nunca teve acesso a isso”. Para ele, vivemos uma cultura de alienação sobre os impactos do consumo: “Somos ensinados a não saber de onde vêm nem para onde vão os produtos que usamos. Enquanto tratarmos lixo e mercadoria como algo alheio à natureza, seguiremos nos entendendo fora dela”.

A arte que populariza, segundo ele, é a que não incomoda. “A produção artística que lucra hoje em dia é, em sua maioria, aquela que não toca nas nossas questões estruturais”.

Desafios e potências

Apesar das barreiras, Guiga vê sua trajetória amadurecer. Hoje, busca ampliar seu impacto com elementos urbanos que possam qualificar o espaço público e democratizar o acesso à arte. “Vejo que minha produção é um instrumento para pautar diversas questões. O maior benefício de trabalhar com reuso é não ter dúvida da relevância do que faço”.

Entretanto a desvalorização ainda pesa. “As pessoas não sabem valorizar os processos manuais, comparam com produtos industriais, como se fossem equivalentes. Ainda estou distante do lugar que desejo com minha produção”.

Nesse ponto, sua visão se alinha com as propostas defendidas pelo Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil, que aponta para uma transição urgente de um modelo de descarte para um de reaproveitamento e economia circular. A reciclagem, no entanto, ainda representa uma fração mínima da destinação dos resíduos no país.

Guiga conclui com lucidez: “Não faço arte só por estética. Faço porque acredito que o que é rejeitado carrega potência. E transformar isso é uma forma de mudar o mundo, nem que seja um pedaço de cada vez”.