Malu Antunes revoluciona a cena cultural de Brasília com sua arte

Com o Visão Periférica, a artista desafia as narrativas dominantes, oferecendo uma visão autêntica e criativa da cena cultural periférica de Brasília.

Paola Cieglinski Lobo

Postado em 14/05/2025

"Eu só queria dar voz a quem ninguém escuta e é isso que eu tento fazer":  é assim que Malu define sua jornada na arte / Foto: Paola Cieglinski
“Eu só queria dar voz a quem ninguém escuta e é isso que eu tento fazer”: é assim que Malu define sua jornada na arte / Foto: Paola Cieglinski

“Eu preciso usar minha arte para ajudar na arte dos meus”. Maria Luísa Antunes é uma artista independente que vem se destacando na cena cultural de Brasília, especialmente na periferia da capital. Aos 22 anos,  já construiu uma trajetória marcante como comunicadora cultural, fotógrafa, produtora de eventos e fundadora do projeto Visão Periférica. Seu trabalho é voltado para a valorização da arte periférica, dando voz aos artistas do funk, rap e trap, que, muitas vezes, não têm espaço nos meios de comunicação tradicionais. Através de sua visão criativa e engajada, Maria Luísa tem se tornado uma referência para muitos, quebrando barreiras e mostrando o poder transformador da arte nas comunidades.

Desde a infância, a artista esteve em contato com a cultura da periferia de forma inconsciente, influenciada pelos seus irmãos mais velhos e pelo rap, o grafite e as referências visuais e sonoras dessa cena. À medida que crescia,  foi se aprofundando nessa cultura e, aos 12 anos, começou a frequentar batalhas de rima, consolidando o seu vínculo com a arte. Sua trajetória se torna ainda mais relevante quando olhamos para o contexto em que ela atua: uma mulher negra e independente, que se depara com os desafios de ser respeitada em um espaço dominado por homens e com pouca visibilidade.

Além de sua atuação como comunicadora e produtora, Maria Luísa também é mãe de Cauê, de 3 anos, equilibrando sua intensa rotina profissional com a maternidade. Seu trabalho, que mistura diferentes linguagens artísticas, como a fotografia e a produção de eventos, é um reflexo da sua visão de mundo, que busca destacar a arte de quem vive e cria na periferia. Com a primeira edição da festa Curto Circuito, ela mostrou a força da cultura urbana e a importância de criar espaços de pertencimento para quem consome e produz essa cultura.

Nessa entrevista, Maria Luísa compartilhou sua visão sobre a arte periférica, os desafios enfrentados e o impacto de seu trabalho, além de dar conselhos para outras mulheres que sonham viver da arte.

Como e quando você começou a se envolver com arte e cultura na periferia de Brasília?

Eu meio que separo em duas etapas, tá ligado? A primeira seria meio inconsciente e a segunda, de forma consciente. A inconsciente vem da minha infância; eu sou de uma família de pais separados e sou a caçula dos meus irmãos, a única mulher também. Então, as minhas inspirações masculinas, as figuras masculinas da minha vida, foram meus irmãos mais velhos. E eu lembro muito deles ouvindo rap, deles desenhando letras de grafite, no estilo de se vestir, o jeito que meu irmão mais velho usava o cabelo, deixava um black. Tudo isso me alimentando, foi o meu primeiro contato de forma inconsciente, porque era muito pequena para assimilar ainda o que era aquilo. Eu lembro que, com seis anos, foi muito marcante para mim. Eu lembro até hoje nitidamente, o DJ Jamaica foi no meu colégio. Eu estudava em escola pública, aqui na Classe 1, no Guará, e ele foi lá cantar “Pato Maloqueiro”. Pulando um pouco mais para frente, quando eu tinha uns 11/12 anos, eu comecei a frequentar as batalhas de rima e me aprofundar melhor no assunto. Sempre escutei muito as músicas, mas ainda não tinha idade suficiente para realmente entender o que era aquilo, pesquisar a fundo a cultura, começar a me envolver de fato. E aí, com 12 anos, que eu dei esse pontapé inicial, com ajuda das batalhas de rimas, amizades que eu fui fazendo, fui começando a caminhar com minhas próprias pernas para consumir isso. E aí fui estudando e me aprofundando, sabe?

O estúdio onde Malu produz seus conteúdos para as rede sociais é repleto de lambe lambes de artistas nacionais e internacionais da cena do rap e funk / Foto: Paola Cieglinski
O estúdio onde Malu produz seus conteúdos para as rede sociais é repleto de lambe lambes de artistas nacionais e internacionais da cena do rap e funk / Foto: Paola Cieglinski

O que te motivou a criar o projeto Visão Periférica e qual é o impacto que você percebe dele hoje?

Essa pergunta é até engraçada, porque eu só consegui fazer o Visão Periférica depois que eu entendi o que é a comunicação de fato, porque eu entrei na faculdade de Jornalismo com aquela visão quadrada de jornalismo, falar sobre política, Jornal Nacional. E aí, quando eu estava dentro do curso, eu fui vendo o quanto a comunicação é abrangente e poderosa, como a fala é um dom, uma arte. E aí, nisso, eu me peguei pensando no que eu poderia fazer, aquela ideia de querer mudar o mundo. Se eu tenho esse dom, se eu consigo trabalhar tão bem com essa arte, se essa arte me encanta tanto, como eu posso usar essa arte para impactar os meus? E aí me veio a ideia do Visão, por ser uma pessoa que sempre consumiu muito funk, muito rap, e vi poucas coisas sobre, principalmente por ter muitos amigos artistas na cena do funk e do rap, e não entender porque era tão difícil aquela arte sair da nossa bolha, sair dos nossos amigos, sair desse grupo pequeno, ser espalhado, estar em um lugar maior de destaque. Eu falei: “Tá, eu preciso usar a minha arte para ajudar na arte dos meus.” E aí, nisso, nasceu o Visão. Eu estava com essa ideia, aí teve um show do DJ M540 aqui em Brasília, e eu compartilhei a ideia com ele e ele achou muito da hora também. Inclusive, foi a primeira pessoa a me dar um apoio e foi o meu primeiro entrevistado, enfim, e foi ganhando forma, foi algo que foi nascendo naturalmente, de uma ideia que foi conversada com outras pessoas do meio, até eu ver que realmente aquilo ali poderia ser útil. Eu só queria dar voz a quem ninguém escuta e é isso que eu tento fazer.

Em seu perfil no Instagram, Malu publica suas entrevistas e conteúdos com diversos artistas relevantes na cena cultural / Foto: Paola Cieglinski
Em seu perfil no Instagram, Malu publica suas entrevistas e conteúdos com diversos artistas relevantes na cena cultural / Foto: Paola Cieglinski

Você transita por várias linguagens — da fotografia à produção de eventos. Como cada uma delas te representa como artista?

Esses dias eu vi uma frase que me marcou bastante, que dizia assim: “Ser artista é existir criativamente onde o mundo tenta constantemente te moldar.” E, pra mim, tudo parte daí, porque a criatividade está ligada à autenticidade. E a autenticidade, pra mim, está totalmente voltada à visão do mundo. Cada um tem uma visão do mundo, cada um enxerga tudo, cada arte, cada passo, cada um enxerga de uma forma. E é isso que eu tento mostrar, seja fotografando as coisas do jeito que eu enxergo, seja fazendo entrevistas com pessoas que eu enxergo uma arte que merece ser ouvida, seja produzindo eventos para dar espaço para pessoas que merecem ser vistas, sabe, ser colocadas em holofotes, serem ouvidas, serem assistidas.

Qual foi o maior desafio que você enfrentou como mulher negra e independente no meio cultural?

Eu acho que o mais difícil é estar sempre tendo minha credibilidade em jogo, sabe? Estar sempre sendo questionada se eu realmente tenho conhecimento para estar fazendo aquilo, se eu realmente sou boa para estar acessando esse lugar ou se é porque alguém está dando em cima de mim. O machismo está sempre presente, é um meio muito masculino, então é sempre colocado em jogo se eu sou boa de fato, se eu sei o que eu estou fazendo, se eu sirvo para estar naquele espaço ou se eu só estou ali porque algum homem me colocou ali, sabe?

Como surgiu a ideia da festa Curto Circuito e como foi a experiência da primeira edição?

Então, a Curto Circuito surgiu de uma ideia coletiva, uma vontade de fazer um evento diferente, que trouxesse o que a gente precisava, que trouxesse essa cultura do hip-hop, do funk, essa cultura periférica de uma forma muito bem colocada e de forma que o público realmente se identificasse com a festa e se sentisse bem estando lá, não se sentisse estando num lugar que não te pertence, uma sensação de pertencimento maior a todo mundo que consome essa cultura, sabe? E aí, nisso, a gente juntou três projetos independentes, que são o Visão do Boiler, o Da Rua e a Blue Coast, para, enfim, fazer isso acontecer. E, no fim, deu muito certo. Foi uma primeira experiência muito legal, foi o meu primeiro evento grande, sabe, para mais de 400 pessoas, e foi uma experiência muito boa. Eu tive muitos feedbacks bons sobre exatamente o que a gente buscava.

Você também é mãe. Como é equilibrar a maternidade com uma rotina tão intensa de produção cultural?

É extremamente cansativo, mas é extremamente gratificante também, porque o meu sonho só foi construído depois de eu virar mãe. Porque, antes de eu ter o Cauê, eu não tinha nem ideia do que eu queria para a minha vida. Para mim, eu ia continuar trabalhando só fazendo freela em bar, e era isso, e tava bom, eu não precisava de muito mais. Eu não tinha vontade de estudar, eu não tinha vontade de nada. E, com o nascimento do meu filho, nasceu meu sonho junto, sabe? Meu sonho de conseguir construir algo que impactasse, que ele olhasse e falasse: “Minha mãe é muito foda, minha mãe conseguiu fazer isso, minha mãe correu atrás do que ela queria.” E eu acho que é isso que me motiva todos os dias. Por mais que seja muito cansativo, por mais que seja um meio ingrato também, a gente trabalha muito, mas é muito difícil de realmente ter um retorno. A gente corre mais do que tem retorno, mas, ainda assim, me deixa muito feliz de, quando chegar em casa, poder contar pra ele que ia correr atrás do meu sonho, pra ele poder correr atrás dele também futuramente.

Tem algum momento marcante na sua trajetória que te dá força quando bate o cansaço ou a dúvida?

Eu tenho dois momentos. O primeiro foi a primeira pessoa que veio falar comigo que eu era referência para ela, primeira pessoa que não me conhecia, a primeira pessoa que não era meu amigo, nunca tinha me visto realmente na vida, vindo elogiar meu trabalho e falar que eu servia de referência pra ela, que estava fazendo comunicação. Isso foi muita loucura pra mim, eu nunca imaginava ouvir aquilo. E o segundo momento foi eu ter falado com a Julia Costa – compositora e rapper. Isso mexeu muito comigo, porque ela é uma referência em tudo na minha vida. As músicas dela me dão forças diariamente, eu sinto que ela é uma menina como eu, sabe? Nós somos iguais, somos mulheres iguais.

Na sua visão, o que ainda falta para que a arte periférica seja mais valorizada e reconhecida?

A primeira coisa que teria que mudar é o pensamento da sociedade, o preconceito, o pensamento elitista com a arte periférica. Tudo que vem da periferia é visto como menor, como ruim, como alternativo, colocado como menor. E a gente precisa mudar isso, mudar essa ideia de que a arte é só o que tá no museu, a arte é só o que a elite traz pra gente, porque é totalmente ao contrário. A cultura vem do popular, a cultura vem da periferia. Então, eu acho que a gente tinha que começar essa educação: reeducação de adultos e educação de crianças, sabe, botando esse contato com a cultura popular desde cedo. E, enfim, começa por aí, matando o pensamento elitista. Depois, a gente vai para o investimento, o governo incentivando e investindo na periferia, seja com editais, com aulas, workshops na periferia para a valorização dessa arte. Não só com isso, mas também dando palco, sabe, criando festas, eventos que chamem de fato essas pessoas para se apresentarem, dando voz a eles. E, com isso, vem a visibilidade, que até vem uma parte do que eu estou tentando fazer e o que me fez começar o Visão, que é a falta de espaço nas mídias para essas pessoas. Você não vê elas no jornal, você não vê ninguém falando sobre cultura periférica nos portais, sabe, de grandes notícias. Enfim, isso precisa mudar. É preciso dar voz, é preciso de um apoio, sabe, de uma cobertura sobre isso. É preciso que essa parte seja colocada em centros, seja levada da periferia para os grandes centros também.

O grupo de hip hop americano N.W.A  é uma grande referência para Malu, que homenageou o grupo em uma de suas tatuagens / Foto: Paola Cieglinski
O grupo de hip hop americano N.W.A é uma grande referência para Malu, que homenageou o grupo em uma de suas tatuagens / Foto: Paola Cieglinski

Quais artistas ou projetos te inspiram atualmente na cena cultural do DF ou nacionalmente?

Os artistas que mais me inspiram são mulheres comunicadoras. Minha maior inspiração é a Kenya Sade, ela é a minha maior referência em tudo que eu faço. Ela é apresentadora da Globo, faz a cobertura de festivais e é muito lindo tudo que ela faz, a forma que ela faz, ela sendo uma mulher negra nesse destaque… Agora de conteúdo preciso destacar 3 minas, primeiramente a Lírios, The Lírios, lá de BH, que foi minha maior inspiração quando comecei com os vídeos. As outras duas são de São Paulo e a forma que elas comunicam, que elas trazem a cultura periférica na fala delas e no modo que elas fazem os vídeos também me inspiram, que é a Bia Del e a Mindset, Beatriz Mello. Essas quatro, são minhas inspirações. Principalmente a Kenya Sade, preciso destacar isso 80 vezes. Ela é minha maior referência em tudo que eu faço.

Se pudesse deixar uma mensagem para outras mulheres negras que sonham viver de arte, qual seria?

Começa e acredita. Acredita em você, acredita na sua arte. Independente do jogo ser muito injusto, ser algo incerto, ser cheio de medos, cheio de riscos, é você acreditar. Você pode estar fazendo sua arte sem saber se alguém tá ouvindo, mas você pode ter certeza que alguém tá te vendo, ouvindo, consumindo. Isso tá tocando a vida de alguém, mesmo que você não saiba. Então, começa e acredita que uma hora você vai começar a ver os resultados, vai ser valorizado, uma hora vai chegar tudo aquilo que você tá apontando. Se você viver da arte, sua vida vai virar arte, sabe? Seja aquilo que você respira, seja autêntica, seja criativa. Aposta no que você acredita de fato, que alguém vai apostar com você, pode ter certeza. 

Confira a seguir as redes sociais da Malu:

Instagram: @maluantunes_   

Tiktok: @maluant