Tatuagem rompe padrões e firma lugar como expressão artística
A tatuagem se consolida como arte, mas ainda convive com barreiras simbólicas profissionais e culturais.
Postado em 25/06/2025
Nos traços finos do fine line, nas cores vibrantes do old school ou na força dos desenhos obscuros e sólidos do blackwork, a tatuagem rompe com os limites da pele para se afirmar como expressão artística e pessoal. No Brasil, país com mais de 22 mil estúdios e onde 32% da população é tatuada, segundo o Sebrae, o corpo se transforma em tela, mas ainda enfrenta os olhares tortos de uma sociedade que, em muitos aspectos, não abandonou seus antigos julgamentos.
A arte de tatuar, hoje mais diversa, sofisticada e técnica, é ao mesmo tempo vitrine de criatividade e espaço de disputa por reconhecimento. A tatuadora Mel Moura, que iniciou na área depois de trabalhar com arte digital, resume: “A tatuagem, assim como outras artes, é uma forma de identificação, tanto do tatuador quanto do cliente. Acredito que ela abre uma porta para você se expressar e deixar essa expressão marcada na pele de uma pessoa que também se enxerga no desenho”.

Mel cria desenhos autorais e também adapta projetos com base no corpo e na textura da pele de cada cliente. Segundo ela, estilos como o fine line são tecnicamente desafiadores, e as limitações da arte na pele exigem estudo e adaptação: “Cada estilo de tattoo tem uma técnica diferente, cada agulha tem uma técnica diferente, cada máquina também. Confesso que isso é o que mais me dificulta”.
Estigma, gênero e espaço social
A tatuagem não é apenas uma estética: é uma escolha que ainda pode custar portas fechadas, julgamentos e exclusões. Para Portela, jovem bodypiercer com diversas tatuagens visíveis, inclusive no rosto, o preconceito é cotidiano: “Se você ficar uma hora comigo, for no mercado, na rua, no shopping, você vai ver que as pessoas reparam muito. Tem gente que esconde bolsa, atravessa a pista, sai de perto”.
Segundo ele, o julgamento vem antes de qualquer outra coisa. Primeiro, observam como são as tatuagens, a quantidade, a localização e outros detalhes, o que interfere bastante. Depois, entra a questão de classe social e cor da pele, pessoas periféricas, de classe baixa e com tons de pele mais escuros são mais julgadas. Só então, segundo ele, o julgamento chega à questão do gênero.
Mesmo dentro das famílias, o impacto pode ser forte. “Minha família é muito conservadora, muito religiosa. Passei muito preconceito pela família, muito julgamento, até a galera entender de fato. Isso levou uns quatro anos”, conta. Já no mercado de trabalho, segundo ele, a consequência foi direta. Antes de se tornar piercer, trabalhava como recepcionista, mas foi demitido por causa das tatuagens. Depois disso, afirmou que nunca mais conseguiu um emprego formal, mesmo tendo enviado cerca de 200 currículos sem receber nenhuma oportunidade.
Essas experiências individuais refletem números maiores. Uma pesquisa feita pela plataforma Tattoo2me em 2018 revelou que 57,96% dos entrevistados sofreram preconceito por terem tatuagens, sendo que 73,89% relatam discriminação dentro da própria família e 22,26% no ambiente de trabalho.
A especialista em Recursos Humanos Marina Salles confirma que, embora o cenário esteja mudando, ainda há setores mais resistentes: “O mercado de trabalho já veio desmistificando muito isso, mas existem áreas sensíveis, como o atendimento ao público ou o Direito. Já vi casos de exclusão por causa de tatuagens no rosto, no pescoço”.
Estética, técnica e resistência
O Brasil aparece entre os países que mais buscam por tatuagens na internet e, de acordo com a Associação Brasileira de Tatuadores, tinha chances de movimentar 2,5 bilhões de reais no setor em 2024. Com uma gama de estilos que vão do realismo detalhado ao pontilhismo francês, passando pelas tatuagens orientais, a tatuagem se firma como campo criativo, técnico e profissional.
Para Thiago Almeida, tatuador de blackwork e dark ornamental, “A arte explora muito o campo da perspectiva, de enxergar reflexão, beleza, sensações, inspirações, emoções”. Ele entende seu trabalho como algo que vai além da estética: “Eu expresso a seriedade física, mental e até espiritual da tattoo. Tem que trazer responsabilidade e respeito”.
No entanto, ele reconhece as barreiras: “Ainda hoje há esse reflexo do preconceito ‘estrutural’ de que somos marginais. Até dentro da profissão há quem julgue”. Para ele, a escolha do local do corpo a ser tatuado ainda influencia o julgamento social. Segundo afirmou, muitas pessoas começam pelas tatuagens no braço, enquanto outras optam por locais mais escondidos por causa da família.

A resistência também aparece na busca por espaço nas artes formais. Mel Moura afirma: “Não vejo muito espaço no circuito artístico tradicional, só em eventos de tattoo específicos mesmo”.
Apesar disso, os tatuadores seguem se profissionalizando, muitos vindos de cursos em artes visuais, design ou aprendizados autodidatas. Thiago ressalta: “Tem entrado mais concorrência no mercado, e estão se destacando os artistas que se entregam de fato”.
Entre o reconhecimento artístico e o estigma social
Mais do que decorar, a tatuagem pode ser um ato de coragem, como define Portela: “Acredito que a tatuagem é a externação do que tem dentro de você, do que você é e como você é, é incrível e também é um ato de coragem. Porque eu acredito que todo mundo guarda vontades para si. Então, quando você se liberta disso, você se permite.”

A afirmação da tatuagem como arte e identidade convive, portanto, com a expectativa de aceitação e a realidade da exclusão. Ainda que a lei brasileira proíba a discriminação de pessoas tatuadas (como na Lei Nº 9.029/1995), o estigma persiste, muitas vezes disfarçado. Para Portela, a sociedade está, de fato, mais tolerante, já que a tatuagem se tornou algo mais comum. No entanto, ele acredita que o preconceito ainda existe, apenas mais disfarçado, e afirma que as pessoas aceitam até onde convém.
Para Marina Salles, há avanços geracionais importantes: “As novas gerações olham muito para competência, valores. Mas ainda é algo que persiste”. Enquanto cresce o número de pessoas tatuadas e se amplia o reconhecimento da tatuagem como arte, a aceitação social ainda caminha em ritmo desigual.