Nivaldo Silva Sousa: 92 anos de história do interior da Bahia ao Planalto Central
Nascido no interior da Bahia, em uma família de analfabetos, letrou-se sozinho, tornou-se escrivão da PCDF e prefeito após aposentar-se
Postado em 02/07/2024
Nivaldo Silva Sousa nasceu no povoado de Jordão, no município de Brotas, no estado da Bahia, em 24 de junho de 1932, dia de São João. A cidade natal, onde ele viveu até os 5 anos, hoje se chama Ipupiara e conta com pouco menos de 10.000 habitantes segundo o Censo 2022.
Aos 5 anos, junto com seu pai, Abdias Silva Sousa, e sua mãe, Honorinda Silva Sousa, se mudaram para o município de Gentio do Ouro, onde viveu até os 13 anos. A mudança foi motivada pelo garimpo, ocupação de seu pai. Na época, além do ouro, havia muito garimpo de cristal na região.
Ambos os pais eram analfabetos, mas, em Gentio do Ouro, Nivaldo teve a primeira oportunidade de alfabetizar-se. Havia uma pequena escola particular no município. Nivaldo se recorda que o professor, Arnaldo, era sapateiro, e que vendia certas coisas para manter-se; o que ganhava como professor não era suficiente. Além disso, era semianalfabeto. Nivaldo só pode frequentar a escola por cerca de um mês; seus pais não tinham condição de financiar seus estudos.
Quando estava com cerca de 13 anos, em meados dos anos 1940, seus pais decidiram mudar-se novamente. Escutaram que no Piauí havia a oportunidade de garimpar diamante. Instalaram-se onde se tornaria o município de Monte Alegre, no sul do Piauí. O povoado só se tornou município em 1954, por meio de uma lei estadual.
Lá, Nivaldo, aos 13 anos, teve seu primeiro emprego. Como o pai, foi garimpeiro. Entretanto, ainda adolescente, conseguiu um emprego no comércio local. Recorda-se que seu primeiro empregador no comércio foi o turco Hasan. Depois foi trabalhar para Zé Salomão, também comerciante.
Sua mãe havia voltado para a Bahia pouco depois de chegarem a Monte Alegre. Junto com seu pai, se recorda, moravam na casa de uma família de evangélicos, todos analfabetos.
Nessa casa onde moravam, havia uma bíblia que, Nivaldo afirma, foi uma das bençãos divinas em sua vida, pois foi em grande parte por meio dessa biblía na casa de analfabetos que ele leu “de Gênesis a Apocalipse”, conta, que ele aprendeu a ler.
Lembra-se de um episódio, por volta dos seus 16 anos, em que foi a um culto acompanhar a família com que morava. O pastor pediu para que cada pessoa fizesse uma pequena dissertação sobre um versículo. O pai da família, não sabendo ler, não quis participar e, então, Nivaldo pediu para que ele pudesse fazer em seu lugar. O pastor ficou impressionado com o pequeno discurso preparado por Nivaldo e quis levá-lo para estudar no município de Corrente, no sul do Piauí, onde havia um instituto bancado por estadunidenses. Entretanto, seu pai não autorizou.
Aos 17 anos, Nivaldo foi registrado oficialmente. Em seus documentos, consta que nasceu em 20 de março e não 24 de junho, seu aniversário de fato. Conta que quando tinha 17 anos havia uma eleição para prefeito em Monte Alegre. Estava com seu pai e foram abordados por um dos candidatos, que insistiu que seu pai votasse nele. Entretanto, seu pai disse que não podia, pois era analfabeto. Àquela altura, Nivaldo já sabia ler e escrever, porém ainda era menor de idade. Apesar disso, como não era ainda registrado, o candidato aproveitou-se da situação e registrou-o um pouco mais velho, para que pudesse conceder a ele seu voto.
Com mais ou menos 20 anos conseguiu mudar de carreira. Deixou os trabalhos com o comércio e foi trabalhar na prefeitura do recém consagrado município de Monte Alegre do Piauí. Conta que não foi uma linha reta. O emprego era um favor destinado a outra pessoa, que acabou não querendo o cargo que foi oferecido a Nivaldo. Entretanto, ainda havia um empecilho: Nivaldo não possuía certificado de reservista do exército. Então, a princípio, entrou nesse emprego usando o nome do pai.
Eventualmente se regularizou e permaneceu nesse emprego tranquilamente. Aos 25 conheceu sua futura esposa, Arquimínia, com quem permanece casado até hoje e com quem comemora nesse ano 67 anos de casamento. Ele conta que a família dela não queria essa união, “eram pessoas de posse e eu era funcionário de prefeitura, ganhava quase nada”, conta e, sem pausas, emenda que “roubou ela de noite e se casaram no dia seguinte”, em 1957.
Em 1958 tiveram seu primeiro filho, Vatanábio Brandão Sousa. Nivaldo conta que não queria um nome comum e que um amigo da época, Pedro Borges, queria muito que o casal colocasse o nome de Watanabe no filho em honra a um médico japonês ao qual ele tinha muita gratidão. Quando foram registrá-lo no cartório “aportuguesaram” a grafia e assim ficou”: Vatanábio.
Vinda para Brasília
Um dos irmãos de Arquimínia, José Brandão, sempre chamado de Zequinha, foi visitá-los certa vez. Zequinha trabalhava na construção de Brasília e tinha um caminhão e, Nivaldo conta com um leve sorriso, que “quem tinha caminhão era gente importante”. Ele recorda que muita gente da região trabalhou na construção e sempre voltavam pra casa com um “dinheirinho”. Zequinha convenceu-o a ir e em 1960 iniciaram a viagem de 12 dias no caminhão da Chevrolet. Arquimínia ficou com Vatanábio em Monte Alegre.
Logo que chegaram em Brasília, Nivaldo ficou na casa de Galdino, na Vila Amaury que, pouco depois, seria submersa pelas águas do Paranoá. Lembra-se que não ficou nem 8 dias desempregado. Conseguiu emprego na Cetal, uma das empreiteras que realizavam as obras na cidades, e ficou com a responsabilidade de ser apontador, registrando as horas de chegada e a presença de funcionários na construção da ponte do Bragueto. Depois do trabalho na ponte do Bragueto, foi encaminhado para a contrução do primeiro hospital de Sobradinho.
Não tardou e, apenas 3 meses depois de chegar, foi buscar Arquimínia e Vatanábio no Piauí, ainda em 1960.
Depois do emprego na Cetal, vendo a movimentação da construção dos primeiros prédios da Asa Norte, decidiu abrir um “boteco” ali. Foi nessa época que nasceu Wataney, a segunda filha do casal. Arquimínia conta que, de maneira diferente de Vatanábio, tomou muito cuidado para que escrevessem o nome dela “certinho”. E lembrando, Nivaldo conta que ela nasceu em tempos ruins.
Nesse contexto, tirou a carteira de motorista e tentou um emprego na Transportes Coletivos de Brasília (TCB, existente até hoje). Não passou. Ouviu que a polícia civil estava contratando e foi fazer o teste. Foi aprovado, mas era necessário um exame de direção. Um pouco chateado com a falha no teste da TCB, se preocupou, mas logo se tranquilizou quando lhe disseram que se ele tinha carteira de motorista estava dispensado. Infelizmente, faltavam carros na polícia civil e, sendo assim, não podiam contratá-lo naquele momento. Voltou para TCB, frustrado, para tentar novamente. Se recorda que estava na fila quando ouviu de alguém que havia chegado “um monte de carros” na polícia. Nivaldo imediatamente foi para lá e assim conseguiu o emprego que teria até se aposentar.
Ao longo dos anos 60 viu os filhos crescerem, manteve o emprego estável na polícia, entrou para a Maçonaria e para o clube Lions. Em 1970, se mudaram para Planaltina, onde eventualmente se tornou escrivão. Wataney, filha, conta que os colegas ficavam impressionados com sua capacidade de datilografar e de redigir depoimentos. Depois de certo tempo, foi promovido a chefe de administração da delegacia, cargo que manteve por 12 anos, na 16ª Delegacia de Polícia do Distrito Federal, até se aposentar.
Volta para o Piauí
Em 1985, após se aposentar, Nivaldo e Arquimínia decidem voltar para Monte Alegre do Piauí, deixando Vatanábio e Wataney em Brasília.
Em 1987, conta que recebeu uma “comitiva” de cerca de 10 amigos em casa: queriam que ele se candidatasse a prefeito da cidade. Então, a cidade não tinha mais que 8 mil habitantes. Disse que os amigos afirmaram “você vai ser nosso prefeito”. Veementemente, Nivaldo recusou a proposta. 15 dias depois, veio outra comitiva, ainda maior, e afirmaram: “seu nome é aceito no mato e na cidade”.
Candidatou-se e venceu: teve mais votos que os outros dois candidatos juntos.
Entretanto, Nivaldo nunca gostou de falar do assunto, disse que “saiu diferente de lá”. Nunca mais quis saber da vida política, nunca mais se candidatou. Com certa melancolia, conta das pessoas com as quais se decepcionou e amizades das quais se afastou nessa época.
Hoje cuida de uma pequena fazenda. Visita Brasília uma ou duas vezes por ano. Até pouco tempo atrás, recebia visitas em sua casa que insistiam que deveria se candidatar novamente e, com uma risada, desencorajava o assunto.
Mas continua a fazer discursos: em aniversários, jantares em família, e até em missas. Em homenagem a Antônio, um vaqueiro da região, escreveu o seguinte poema:
Sabe o que é um vaqueiro, doutor?
É uma pessoa que pouco ou nada estudou
mas um ser humano igualzinho ao senhor.
Se alguém olha para um vaqueiro com desdém,
é porque não sabe o quanto de herói ele tem.
Vaqueiro não tem luxo,
nasceu com essa predestinação.
Seu palitó é um gibão,
não usa prata nem ouro,
sua gravata é um guarda-peito de couro.
Se quiser ver uma coisa que qualquer um arrepia,
é ver um vaqueiro num cavalo bom
atrás de uma reis bravia:
salta moita,
quebra galho,
rompe espinho.
Pra ele, todo carrasco é caminho.
Ainda tem o lado que a metafísica é a lavra.
Como por exemplo curar os animais por palavra,
identificá-los pelo rastro, pelo berro e pelo som do chocalho.
É aí que está a ciência do seu trabalho.
O vaqueiro tem 3 auxiliares importantes:
o cachorro, o cavalo e o berrante.
E por falar em vaqueiro,
não posso esquecer de Antônio do Pinheiro,
vaqueiro de alma e coração,
aos 84 anos no exercício da profissão.
E só não se encontra aqui presente,
pois está muito doente.