Sazonalidade pediátrica pressiona sistema de saúde do DF e revela falhas estruturais
Alta previsibilidade e pouca estrutura: especialistas comentam sobre a resposta do DF à sazonalidade pediátrica.
Postado em 19/03/2025
Com a chegada do período crítico de doenças respiratórias, o sistema de saúde do Distrito Federal enfrenta uma alta previsível na demanda por atendimento pediátrico, mas ainda carece de planejamento adequado para lidar com o problema. Especialistas ouvidos destacam a necessidade de ações estruturantes, enquanto o governo adota medidas emergenciais para tentar suprir o aumento no número de casos.
A Secretaria de Saúde do DF (SES-DF) anunciou a contratação de mais de 14 mil plantões de pediatria, a serem realizados por profissionais de empresas privadas, com investimento de R$15 milhões. O objetivo é reforçar o atendimento nas principais emergências, como o Hospital Materno-Infantil de Brasília (HMIB) e hospitais regionais, durante o pico de doenças respiratórias, que vai de fevereiro a junho. Também foi ampliado o atendimento pediátrico 24h em Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), e há previsão de novas unidades com esse serviço.
Apesar dessas ações, especialistas avaliam que o problema é mais profundo. Pedro Emanuel, pesquisador em saúde coletiva e doutorando na UnB, alerta que o principal desafio é estrutural: “Você pode colocar ali mil médicos para atender. Se você não tem leitos para lidar com essas crianças, você não consegue resolver esse problema”. Para ele, a limitação de estrutura física, como a baixa oferta de leitos pediátricos, torna a resposta emergencial incompleta: “A gente funciona quase com capacidade máxima de operação. Então, os profissionais já estão numa rotina bastante exaustiva e vão enfrentar uma carga ainda maior com o aumento dos casos”.
A pediatra pneumologista Mádia Costa, que atua na UPA do Recanto das Emas, reforça a necessidade de equipes fixas e estruturadas, destacando que “o ideal é que existisse número efetivo de médicos na escala de plantão, não sobrecarregando quem está lá”. Ela avalia que o déficit de profissionais agrava o quadro: “Plantões exaustivos, uma demanda muito grande fazem com que nem todos os pacientes consigam ser atendidos”.

Pedro reforça que o impacto da crise vai além dos profissionais: “Isso gera um estresse no processo de trabalho, leva a uma maior demanda das equipes, gera um desgaste enorme para os profissionais e também para as famílias”. Para ele, o que leva à morte de crianças em muitos casos não é a doença em si, mas a falta de assistência: “A maior causa de mortalidade é a falta de assistência, não é nem a própria doença, porque a criança que consegue o atendimento, que é assistida, tem chance de mortalidade quase zero”.
Prevenção e planejamento são soluções possíveis e negligenciadas
Outro ponto destacado pelos especialistas é a necessidade de ações preventivas e de planejamento antecipado. Tanto Pedro quanto Mádia ressaltam que a sazonalidade de doenças como a bronquiolite, causada principalmente pelo vírus sincicial respiratório (VSR), é um fenômeno conhecido e recorrente, o que permitiria medidas mais efetivas se houvesse preparo prévio.
Pedro observa que o VSR acomete principalmente crianças pequenas, sem imunidade, e que o retorno às aulas é um fator de disseminação: “Essas crianças vão estar convivendo com outras crianças nesse período de retorno às aulas, vão ser expostas a esse vírus e posteriormente vão adquirir a doença”. Ele alerta que o maior problema da bronquiolite é a alta taxa de hospitalização, e não apenas o vírus: “A criança vai adquirir a doença e, muitas vezes, vai precisar de hospitalização. O problema é que o sistema já está lotado, e muitas não conseguem acesso, o que leva a um risco de morte evitável”.
Mádia Costa também enfatiza que a prevenção deveria começar antes do pico da doença: “O que dava para ser iniciado mais cedo por uma prevenção mais efetiva seria essa vacinação agora já em março”. Ela destaca a importância de campanhas de conscientização, vacina da gripe, e o uso da vacina recém-incorporada contra o VSR. “A prevenção, com certeza, ajudaria”, completa.
Pedro também aponta falhas no preparo dos profissionais e na ausência de protocolos específicos: “A gente não tem um protocolo de diretriz clínica e terapêutica”. Segundo ele, a falta de um padrão faz com que cada profissional lide com o caso de forma diferente, o que prejudica a eficácia do tratamento e prolonga a internação: “Cada médico tem uma abordagem terapêutica diferente em lidar com a bronquite”. Ele sugere que, a curto prazo, seja elaborado um protocolo nacional de manejo da bronquiolite, algo que poderia reduzir o tempo de internação e liberar mais rapidamente os leitos.

Além disso, Pedro defende o uso de modelos preditivos e inteligência artificial para planejar as ações de forma antecipada e eficiente: “Alguns hospitais privados no DF já fazem isso. Eles usam modelos preditivos para saber o momento exato de começar a conversão de leitos”. No entanto, ele reconhece que, no setor público, a falta de leitos ociosos limita essa possibilidade, mas o uso dessas ferramentas poderia ao menos orientar o momento ideal de ações como a abertura de hospitais de campanha e o reforço de equipes.
O impacto da falta de planejamento vai além dos hospitais. Pedro alerta para o sofrimento das famílias: “Você chega lá e fala, não, não tem atendimento porque a UTI está lotada. Isso para um pai, para uma mãe, é completamente avassalador”. Mádia Costa também reforça que a ausência de políticas permanentes afeta o cuidado básico: “Se a criança tivesse acompanhamento nos postos de saúde, com pediatra de rotina, certamente favoreceria o surgimento de menos complicações”.
Ela lembra que muitas crianças chegam à emergência com quadros que poderiam ter sido evitados com um atendimento prévio: “É uma bronquiolite que começou com coriza, que a mãe não teve atendimento, e a criança chegou à baixa saturação e hoje está no oxigênio”.
Soluções estruturantes e a urgência de políticas permanentes
Apesar das ações emergenciais anunciadas pelo governo, Pedro Fernandes ressalta que soluções definitivas exigem políticas públicas estruturantes. Para ele, é possível mudar esse cenário com vontade política: “Se a gente se esforçar e se organizar a nível de Secretaria de Saúde do DF, a gente conseguiria já no ano que vem impedir quase que todo tipo de surto, ou se não impedir, lidar com quase todo tipo de surto evitando morte”.
Mádia Costa, por sua vez, afirma: “O governo investiu agora em novos médicos para os regionais, então a gente crê, sim, que esse ano vai ser diferente e nós esperamos, torcemos para isso”. No entanto, ela reconhece que “o ideal seria um aumento muito maior do que o atual, um número maior de médicos para atender tanto na emergência como na prevenção”.
O desafio, segundo os especialistas, é que essas ações emergenciais não se limitem a um alívio temporário. “O SUS tenta arcar com tudo, mas precisa de estrutura. É um conjunto de ações que precisa ser feito, desde a prevenção até a ampliação de leitos e contratação adequada de profissionais”, conclui Mádia.
Diante disso, a expectativa é que, com planejamento, investimentos e políticas públicas permanentes, o DF possa evitar a repetição desse cenário nos próximos anos e garantir o direito fundamental à saúde das crianças.