Onde o sagrado e o cotidiano se encontram

Casa dos Arcos resiste como testamento de um dos gênios da arquitetura brasileira

Silvia Bertoldo Guerreiro

Postado em 22/04/2025

Na Casa dos Arcos, o tijolo foi explorado na plenitude de sua potencialidade construtiva e plástica (Foto: Divulgação)

Uma casa pode ser um templo? Um templo pode ser uma casa? No coração do cerrado, a Casa dos Arcos – projeto arquitetônico de João Filgueiras Lima, o Lelé – dissolve essas fronteiras. Mais que uma residência, este é um monumento arquitetônico onde tijolos, luz e a imensidão criam uma experiência quase sagrada.

Fincada em um terreno de 30 mil m² no Setor de Mansões de Brasília, a edificação desafia a ideia tradicional de moradia com seus tijolos formando abóbadas e arcos que remetem a templos religiosos. A dimensão monumental se impõe já no primeiro olhar, como registrou o arquiteto Adalberto Vilela em sua dissertação A casa na obra de João Filgueiras Lima, Lelé: “Ao nos aproximarmos do local, avistamos a casa bem ao fundo do lote. Seus arcos e sua coloração avermelhada são inconfundíveis. […] A ausência de grades ou portões nos intimida a prosseguir, mas continuamos nosso caminho com uma desconfortável sensação de estar invadindo propriedade alheia. Como não há como anunciar a entrada, seguimos até o estacionamento. Esse percurso da rua até a entrada revela-se fundamental por representar um primeiro contato do visitante com as formas elementares responsáveis por toda a organização do projeto: os arcos e as abóbadas.” 

Além da grandiosidade inicial, a casa surpreende pela organização prática do espaço: térrea, dividida em duas alas. A primeira reservada para a parte íntima com quartos, salas, cozinha. A segunda, do outro lado da garagem, abriga piscina, salão de jogos e uma sala de cinema, uma paixão do advogado Nivaldo Borges, proprietário. 

As casas projetadas por Lelé nasciam de suas amizades e a Casa dos Arcos foi criada a partir de um desses encontros. Nivaldo chegou de Pernambuco em Brasília em 1960 e logo conheceu Lelé. Doze anos depois, o arquiteto entregaria ao amigo o projeto da residência no Park Way. A obra teve início em 1972 e foi concluída apenas em 1978, com a participação da família e amigos na construção.

Na época, a execução ficou a cargo de um outro amigo de Nivaldo, o mestre de obras catalão Tião, que estava na cidade. Em entrevista ao Instituto Brasileiro de Tecnologia do Habitat – IBTH, Lelé revela: “Nós chegamos à conclusão que tínhamos que aproveitar o Tião para fazer isso aí, explorar todo o seu potencial de artesão. E só ele era capaz de fazer uma coisa dessas. Então a casa foi muito [estudada], já que o Nivaldo queria fazer uma coisa enorme para toda família morar.” 

Haroldo Pinheiro, professor do curso de Arquitetura do IESB e colaborador de Lelé desde a graduação, explica a essência do trabalho do arquiteto. “Lelé tinha muito respeito pelos materiais de construção. Cada material tem sua beleza implícita em si mesmo. O tijolo tem sua beleza, é tratado com muita vulgaridade nas obras, uma coisa que é quebrada, que é revestida, não aparece, fica escondida. Ele gostava muito de trabalhar com esses materiais aparentes. Então quando ele encontra um mestre assim como o Tião, ele aproveita para aprender, para trocar conhecimentos.”

O projeto da Casa dos Arcos ainda incluía um painel do artista plástico Athos Bulcão – grande parceiro de Lelé em outros projetos –, mas infelizmente nunca foi realizado.

Athos Bulcão, sem data. Estudo para painel – Residência particular – Guache e grafite sobre papel – Acervo Fundação Athos Bulcão

A Casa dos Arcos e o cinema em Brasília 

O artigo “A Casa dos Arcos na história do cinema de Brasília“, de Sarah Almeida, revela que a residência também foi um espaço de resistência cultural. A residência tem uma sala de cinema com 120 lugares, onde filmes eram exibidos 15 dias antes da estreia nacional — alguns deles sem os cortes da censura militar. Nivaldo era um cinéfilo assumido e usava projetores RCA 16mm para exibir obras inéditas a amigos. “Era um cinema clandestino, mas com pipoca e champanhe”, brinca Nivaldo Borges Júnior, filho mais velho do proprietário, em entrevista ao estudo.

O site da Casa dos Arcos registra que o cinema foi inaugurado antes mesmo de a família se mudar para lá, por volta de 1976. As sessões contavam em média com 120 amigos, todos os sábados, às 21 horas em ponto. Já foram filmados cinco longas metragens na casa, entre eles estão os filmes “Somos tão jovens”, “O último Cine Drive-in” e “O Espaço Infinito”. Foram também filmados uma novela da Rede Manchete, alguns curta-metragens e o programa “Casas Brasileiras”, do canal GNT.

Memórias de família 

Atualmente os proprietários da Casa dos Arcos são os filhos de Nivaldo, que assumiram a missão de preservar o espaço e suas memórias. “A Mansão era o lar e representa momentos de alegria, união e orgulho. Alegria em razão dos bons momentos vividos. União porque, desde o início, todos participavam de alguma forma na construção, seja para fazer pisos de concreto, recortar as esquadrias de ferro, plantar árvores, gramas. E orgulho, porque é a concretização de sonhos hoje considerada um monumento arquitetônico de Brasília”, relembra a família Fonseca Borges. 

A dualidade – entre o cotidiano doméstico da família e a escala monumental – gerava situações inusitadas. “Claro que havia o entendimento da diferença, mas tinham algumas situações inusitadas que aconteciam, como pessoas que apareciam perguntando se  a casa era um museu, um órgão do governo.”

A Casa dos Arcos recebe eventos pagos (corporativos, casamentos e ensaios), mas a família Fonseca Borges ainda a usa para festas particulares, como batizados e casamentos de parentes. A casa também está à venda. “De início foi uma decisão difícil, em razão da história vivida e também pelo reconhecimento do projeto visionário do arquiteto Lelé. Depois veio o entendimento de que bons momentos foram marcados na memória e que seria tempo de nova destinação”, comenta. O desejo da família é que a casa siga aberta ao público de alguma maneira. “Agradaria que o legado fosse destinado a um centro cultural, a um museu, a um hotel que pudesse apresentar uma experiência única, a um instituto.”

O professor Haroldo Pinheiro, que foi Presidente Nacional do Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB, lembra que a instituição pensou em comprar a casa para transformá-la em sede. À época, a iniciativa foi deixada de lado porque o espaço ficava muito isolado de alguns serviços essenciais, mas ele comenta que a Casa dos Arcos poderia ter outro uso e continuar sendo apreciada pelo público. “Em cidades mais antigas, centenárias, milenares, você vê construções importantes que foram construídas para um determinado uso, que com o tempo vai se adequando a outros usos em função das mudanças sociais, econômicas e culturais.”