Corrida fortalece cuidados de saúde mental e ganha espaço entre quem tem TDAH
Modalidade democrática e de baixo custo, a corrida ajuda na concentração, no humor e na autoestima de quem convive com o transtorno.
Postado em 24/04/2025
Para além do desempenho físico, os efeitos da corrida têm despertado o interesse de pesquisadores e profissionais da saúde mental, especialmente no contexto do Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). Estudos publicados recentemente indicam que a atividade pode ser uma aliada importante no tratamento do transtorno.
Um artigo no Brazilian Journal of Health Review aponta que exercícios aeróbicos de intensidade moderada a alta podem melhorar funções cognitivas em crianças com TDAH, como o controle da impulsividade e o desempenho escolar. Já um outro estudo divulgado no Journal of Attention Disorders demonstrou que a prática regular da corrida está associada à melhora no controle inibitório e na aprendizagem motora em pessoas com o transtorno.
Em 2024, a corrida se consolidou como o esporte mais praticado no mundo, segundo o Relatório Anual sobre Tendências de Esportes do Strava. No Brasil, os dados impressionam ainda mais: o país foi o segundo com maior número de corredores, ultrapassando a marca de 19 milhões de praticantes.
O levantamento também apontou um aumento de 109% na criação de clubes de corrida no Brasil, quase o dobro da média global, e um crescimento de 9% na quantidade de eventos de longa distância, como maratonas e ultramaratonas. Além disso, segundo a Associação Brasileira de Corridas de Rua, mais de 150 mil disputas do tipo foram realizadas só em 2023.

Descobrindo a corrida como ferramenta de foco
Aos 19 anos, Sofia Vaz é corredora e foi diagnosticada com TDAH ainda no 9° ano do ensino fundamental. Ela conta que sempre teve mais facilidade com matérias de exatas, como matemática e física, mas enfrentava dificuldades para manter a atenção nas demais disciplinas. O diagnóstico, segundo ela, ajudou a entender melhor seu comportamento.
Pouco tempo depois, influenciada pela família esportista, decidiu testar a corrida e acabou descobrindo uma paixão. “Eu continuei na corrida porque meu cérebro encarou como um desafio, da mesma forma como a matemática e a física no ensino médio. Eu queria aprender até ficar boa”, conta.
Entre as primeiras mudanças percebidas por Sofia após incluir a corrida na rotina estavam o humor mais estável e a sensação de energia prolongada ao longo do dia. “Para uma pessoa com TDAH, acompanhar a rotina é uma batalha diária. Ter um treino específico, algo que eu podia fazer sem pensar tanto, e que só dependia de mim, mudou completamente minha vida”.

A neuropsicóloga Bárbara Keigi explica que, no caso de pessoas com TDAH, há uma menor disponibilidade de neurotransmissores como dopamina e noradrenalina em áreas cerebrais ligadas à atenção, motivação e regulação do comportamento. A atividade física, como a corrida, ajuda a estimular a liberação dessas substâncias. “Indivíduos neurotípicos podem observar impactos positivos, apesar de seus sistemas já funcionarem de forma mais regulada, enquanto pessoas com TDAH podem experimentar resultados mais expressivos”, afirma.
A especialista destaca ainda que a corrida pode ajudar no controle da impulsividade, na melhora do sono e do humor, além de favorecer a regulação emocional e a autoestima. “A atividade estimula a ativação do córtex pré-frontal, que está envolvido na regulação da atenção e funções executivas, como: definição de metas, planejamento, execução, flexibilidade e monitoramento de ações inadequadas”, explica. Ela reforça, porém, que a corrida deve ser encarada como uma ferramenta complementar e que qualquer mudança no tratamento, especialmente no uso de medicamentos, deve ser feita com acompanhamento médico.
Desafios da rotina e o papel da educação física
Na prática, Sofia também percebeu esses efeitos. “Eu vi melhoras na ansiedade, nas emoções ruins e na organização. Comecei a conseguir controlar melhor o tempo e consegui focar mais nos estudos”. Para ela, o impacto da corrida vai além do desempenho acadêmico ou físico: “A autoestima melhora consideravelmente. São essas pequenas superações diárias que te ajudam a fazer as tarefas difíceis, o famoso sentimento de ‘eu consigo’.”
Segundo dados da Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA), o TDAH afeta cerca de 2 milhões de pessoas no Brasil. Para a educadora física Amanda Nogueira, que atua tanto em escolas quanto no ensino superior, o número de alunos com TDAH tem crescido nas salas de aula, o que reforça a importância do papel da atividade física nesse contexto. “A educação física, enquanto área voltada à saúde e ao cuidado, é importante no trato de pessoas com TDAH, já que auxilia no bem-estar, regulação do sono e também na socialização”.

De acordo com Amanda, a corrida é uma modalidade acessível e democrática, que pode ser adaptada para iniciantes com o auxílio de planilhas e acompanhamento profissional. Ela reforça que a regularidade da prática é mais importante do que a intensidade. “Manter uma rotina constante e regular garante benefícios para a saúde global do praticante”.
No entanto, manter uma rotina pode ser justamente um dos maiores desafios para quem tem TDAH. Bárbara Keigi explica que a tendência à procrastinação e a desmotivação com a repetição podem interferir na continuidade da prática. “É importante planejar horários e ter estratégias para tornar a atividade mais motivadora, como variar trajetos, treinar em grupo ou estabelecer metas acessíveis”.
Sofia confirma essa dificuldade. Após uma pausa forçada na rotina por conta de uma cirurgia, ela relata ter sentido os impactos emocionais e comportamentais quase imediatamente. “Minha rotina ficou uma bagunça. Com o TDAH, somos agitados naturalmente, então os sentimentos de que eu era insuficiente e de que estava ficando para trás voltaram. Meu quarto voltou a ficar bagunçado e passei mais tempo distraída. Foi difícil”.
A orientação para quem também tem TDAH e quer iniciar uma atividade física é clara: encontrar uma forma de tornar o compromisso pessoal. “Encarar meus esportes como uma responsabilidade ou um compromisso comigo mesma foi a virada de chave na minha vida”, diz Sofia. “Se juntar o ar livre, um desafio, e uma modalidade que você goste, a rotina se torna menos maçante”.
Diante de tantos benefícios, a corrida aparece como um recurso acessível e transformador, que pode, junto a outras formas de tratamento, contribuir significativamente para a qualidade de vida de pessoas com TDAH. A neuropsicóloga Bárbara conclui: “Divulgar os benefícios da corrida também é esclarecer sobre um recurso que pode ser mais acessível à população. Além disso, reforça a ideia de que o tratamento do TDAH vai além do uso de medicação, reconhecendo também a importância de abordagens terapêuticas, mudanças no estilo de vida e no autocuidado”.