Desde 2017, SUS oferece a PrEP, estratégia preventiva contra o HIV

Mesmo com distribuição gratuita, tratamento segue restrito a quem tem acesso à informação

Marcio Domingos

Postado em 22/04/2025


A PrEP é eficaz em até 99% quando tomada corretamente, prevenindo a infecção pelo HIV. Créditos: Márcio Fernandes

A Profilaxia Pré-Exposição ao HIV, mais conhecida como PrEP, é uma estratégia preventiva altamente eficaz contra a infecção pelo vírus, disponibilizada gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS) desde 2017.

A PrEP é indicada para qualquer pessoa que esteja em risco de infecção pelo HIV, independentemente de orientação sexual, identidade de gênero ou perfil sociodemográfico. Inicialmente voltada a públicos considerados mais vulneráveis, como homens que fazem sexo com homens (HSH), pessoas trans e profissionais do sexo, a profilaxia hoje é recomendada para todos que apresentem risco de exposição, sendo considerados os casos de deixar de usar camisinha frequentemente, uso repetido da PEP, histórico de ISTs, prostituição ou práticas sexuais sob efeito de drogas psicoativas.

A medicação combina dois medicamentos: tenofovir e emtricitabina, que juntos impedem que o HIV se estabeleça no organismo. Ela pode ser utilizada de duas formas:

  • Uso diário: um comprimido por dia, todos os dias, de forma contínua;
  • Uso sob demanda: indicado para exposições eventuais, consiste na tomada de dois comprimidos entre 2 e 24 horas antes da relação sexual, seguido de um comprimido 24 horas após a primeira dose e mais um comprimido 24 horas depois, totalizando quatro comprimidos em três dias. Esse método exige atenção rigorosa ao horário das doses e só é eficaz se seguido corretamente;
  • Para mulheres cis e mulheres trans em hormonização com estradiol, a PrEP deve ser iniciada 7 dias antes da possível exposição ao HIV, a fim de garantir que o medicamento esteja completamente absorvido pelo organismo e ofereça proteção eficaz.
A PrEP sob demanda é uma alternativa para quem não precisa de medicação diária, mas ainda assim busca proteção em relações eventuais. Créditos: Márcio Fernandes

Independentemente da forma escolhida, é essencial manter o acompanhamento regular com a equipe de saúde para garantir que o uso seja seguro e eficaz. Além do medicamento, o protocolo inclui testagens regulares para HIV e outras ISTs, além do monitoramento em Unidades Básicas de Saúde (UBS). Ainda assim, o acesso e a adesão permanecem grandes obstáculos para a ampliação da estratégia no país.

Jackson Nogueira, homem gay de 36 anos, começou a usar a PrEP por influência de amigos e da própria consciência sobre autocuidado. Com plano de saúde, ele relata que teve acesso facilitado ao tratamento. “O único receio era o uso contínuo, mas logo percebi que os benefícios superavam qualquer dúvida”, conta. Sem efeitos colaterais relevantes, afirma que a medicação trouxe principalmente segurança emocional. “A PrEP representa uma escolha consciente pela saúde, que deveria ser cada vez mais normalizada e incentivada.”

Já Renan Marques, também gay e com 36 anos, encontrou barreiras. “Na época, o acesso era restrito a grupos muito específicos. Foi difícil conseguir.” Apesar dos receios iniciais com possíveis efeitos colaterais, a experiência foi positiva. Ele destaca, porém, que ainda há falta de divulgação: “Falta informação, principalmente fora do meio LGBTQIA+ e entre pessoas mais velhas. É tudo muito burocrático.” Hoje, ele não utiliza mais a medicação por ter entrado em um relacionamento e não se sentir mais exposto.

A partir deste ponto, ouvimos Leonardo Ramos, médico urologista responsável pelo ambulatório de PrEP do Centro Especializado em Doenças Infecciosas do Distrito Federal. Ele compartilhou detalhes sobre o funcionamento da unidade, os principais desafios enfrentados e os próximos passos da política pública no combate ao HIV.

Hospital Dia que agora é o Centro Especializado de Doenças Infecciosas do DF oferece atendimento especializado e acompanhamento contínuo para usuários de PrEP. Créditos: Márcio Fernandes

Ele chama atenção para a diferenciação entre PrEP e PEP (Profilaxia Pós-Exposição).“A PEP é uma urgência: após uma exposição, a pessoa tem até 72 horas para iniciar o tratamento. Já a PrEP é um serviço ambulatorial, que exige agendamento e acompanhamento. Isso ainda é mal compreendido por muitas pessoas.”

A PrEP foi implementada no DF em 2017, inicialmente em locais como o Hospital Dia (hoje Centro Especializado de Doenças Infecciosas), o Hospital Universitário de Brasília (HUB) e a Policlínica de Taguatinga. “No começo, a maioria dos usuários era de classe média, com acesso à informação, o que não coincide com o grupo mais vulnerável ao HIV”, explica.

Com o tempo, percebeu-se a necessidade de descentralizar o serviço e foi quando houve a expansão para mais algumas unidades específicas, como em unidades na Ceilândia e no Lago Sul, até chegar o protocolo nas Unidades Básicas de Saúde (UBS).

“Hoje, o perfil ainda é majoritariamente de homens gays, brancos, de classe média e entre 30 e 45 anos. A gente sabe que mulheres cis e pessoas trans muitas vezes não se veem em risco, mesmo quando estão”, pontua o médico. “Faltam campanhas voltadas para esses grupos. “Uma das estratégias adotadas foi capacitar o Ambulatório Trans do DF para ofertar a PrEP no próprio local.“Isso fez diferença, já que muitos pacientes não conseguiam se deslocar até outras unidades para o acompanhamento.”

Apesar dos avanços, muitas unidades de saúde ainda não estão preparadas para oferecer o tratamento de forma eficaz.“A realidade é que nem todas as unidades têm estrutura para garantir agendamento, estoque e equipe capacitada. Em algumas, até mesmo os profissionais desconhecem a PrEP”, relata.

Segundo ele, o Distrito Federal ainda apresenta um bom número de dispensações, com grande apoio de clínicas privadas — diferente de São Paulo, onde há políticas públicas mais efetivas de distribuição e acompanhamento.

Com relação à eficácia da medicação, Leonardo é enfático: “Não há casos de pessoas em PrEP que tenham contraído o vírus tomando o remédio de forma correta.” Nos últimos cinco anos, apenas 15 pacientes foram diagnosticados com HIV durante o acompanhamento. São pessoas que estavam no programa, mas abandonaram o uso e acabaram se infectando. “Este ano já peguei dois casos associados ao sexo químico. Foi uma surpresa.”

Sexo químico, ou chemsex, é a prática que envolve o uso de substâncias psicoativas para potencializar o prazer sexual (como metanfetamina, GHB, MDMA, cocaína e poppers).

Outro ponto importante levantado pelo médico é o papel da PrEP no controle de outras ISTs: “As pessoas falam que aumentaram as ISTs, mas a verdade é que aumentaram os diagnósticos. Como os usuários passam por testagens regulares, a detecção precoce permite um tratamento mais eficaz.”

Questionado sobre a DoxiPEP, antibiótico utilizado como profilaxia pós-exposição para ISTs, ele aponta que a prática ainda é rara no Brasil: “Ainda não temos diretrizes oficiais no país, mas em alguns casos usamos de forma pontual, com muita cautela para evitar resistência bacteriana.”

Grupos mais afetados e menos alcançados

Mesmo sendo uma política pública consolidada, a PrEP ainda não chega de forma igualitária à população. Dados do Ministério da Saúde indicam que, em 2022, 63,2% dos novos casos de HIV foram registrados entre pessoas negras (pretas e pardas). No entanto, a maior parte dos usuários da PrEP entre 2018 e 2023 é formada por homens brancos e pardos, de classe média, com ensino superior completo e acesso facilitado a serviços de saúde.

A desigualdade escancara que prevenir o HIV ainda é, em muitos contextos, um privilégio. Para mulheres cis, pessoas trans, negras, jovens e moradores das periferias, o acesso é dificultado por fatores como o racismo estrutural, a LGBTfobia, a desinformação e a precariedade dos serviços públicos. Faltam campanhas direcionadas, profissionais capacitados e um acolhimento que considere as realidades dessas populações.

Segundo dados do Ministério da Saúde divulgados em março de 2025, o Distrito Federal apresenta uma das maiores coberturas de PrEP proporcionalmente ao número de novos casos de HIV no país. No entanto, o perfil dos usuários segue concentrado: 91% são homens que fazem sexo com homens (HSH), 47% estão na faixa etária de 30 a 39 anos; e 90% têm 12 anos ou mais de escolaridade — o maior percentual do país. Em relação à raça/cor, 53% dos usuários se autodeclaram brancos, 35% pardos e 12% pretos. O DF também se destaca por apresentar a menor taxa de descontinuidade no uso da PrEP (21%), abaixo da média nacional (30%).

De acordo com a SES-DF, a PrEP também está integrada às campanhas de saúde pública que promovem a prevenção do HIV e o sexo seguro, com ações específicas para ampliar sua visibilidade além do público-alvo tradicional. Um dos focos é alcançar mulheres cisgênero em relações heterossexuais, que muitas vezes não se reconhecem como parte do grupo que pode se beneficiar da profilaxia. Para isso, a secretaria tem desenvolvido abordagens individualizadas durante atendimentos voltados ao planejamento reprodutivo, saúde sexual e pré-natal, além de reforçar campanhas e treinamentos que consideram fatores de vulnerabilidade como histórico de ISTs ou parceiros com HIV ou com status sorológico desconhecido.

A descentralização da PrEP nas Unidades Básicas de Saúde facilita o acesso a pessoas que moram em áreas periféricas, tornando a prevenção mais inclusiva. Unidade Básica de Saúde 3 do Paranoá. Créditos: Márcio Fernandes

Futuro da PrEP: mais alcance e novas tecnologias

Enquanto países como os Estados Unidos já testam versões injetáveis da PrEP, como o Lenacapavir, com duração de até um ano, o Brasil ainda não tem previsão para adoção desse modelo. “Infelizmente, não participamos de consórcios internacionais de produção, o que atrasa a incorporação dessas tecnologias”, explica o médico.

Por ora, a PrEP oral segue como principal ferramenta de prevenção ao HIV, mas, para que ela alcance quem realmente precisa, é necessário muito mais do que a oferta da medicação. “Campanhas em festas, ações em locais de maior vulnerabilidade, capacitação contínua dos profissionais de saúde… são medidas essenciais. O que temos hoje ainda está muito aquém do necessário.”

A Secretaria de Saúde do DF afirma estar comprometida com a ampliação do acesso à profilaxia e acompanha de perto os avanços no campo da prevenção. “Com a possibilidade de incorporação da PrEP injetável ao SUS, ainda não há previsão oficial para sua inclusão nos protocolos nacionais, mas, assim que isso ocorrer, o Distrito Federal se organizará para seguir as diretrizes do Ministério da Saúde, garantindo a oferta de forma segura e eficaz à população”.