Alvo de ataques desde sua criação, Praça dos Orixás está abandonada e depredada

Algumas estátuas estão irreconhecíveis e não há segurança alguma no local

Vitor Lacerda

Postado em 08/04/2024

Ossaim, Orixá das folhas. Suas vestes apresentavam as cores vermelha, verde, azul e dourado. No braço carregava um cálice com objetos em seu interior.

Terça-feira, por volta de meio-dia, a praça dos Orixás encontra-se praticamente vazia. Nenhum carro no estacionamento. Alguns homens estão sentados em volta de uma barraca, em situação de rua. Um caminhão é o único veículo nas redondezas, dois homens descansam na cabine durante seu horário de almoço. O pequeno posto policial na praça indica que não é utilizado há tempos, a porta está aberta, a corrente ainda pendurada, mas sem cumprir propósito algum. Há duas lixeiras na entrada, com marcas de chamas e rodeadas de sacos de lixo, um colchão e outros sacos volumosos; do adesivo do GDF só sobrou o contorno.

No centro da praça, situa-se a estátua de Exú, embora nenhuma placa identifique-a. O pedestal também apresenta marcas de chamas, assim como a maioria dos outros pedestais. Suas vestes vermelhas literalmente caem aos pedaços. Aos pés de Iemanjá, três ou quatro pequenos vasos de flores. Seu pedestal diferente e suas cores verde e dourada lhe destacam. Logo a seu lado encontra-se Oxalá, tido como rei das vestes brancas, raiz de todos os orixás e criador da humanidade. Sua estátua apresenta o preto das cinzas e o branco das camadas internas do material: resina de poliéster e fibras de vidro estão visíveis. Lhe faltam os dois braços e uma perna.

Ossaim, Orixá das folhas, figura sem a qual, na crença iorubá, nada pode ser feito também teve seu braço arrancado; seu vestido encontra-se queimado, as fibras de vidro visíveis, dando a aparência de esfarrapado, o adorno que usa na cabeça e que ocultaria seus olhos foi destruído. Ogum é um dos poucos orixás que ainda possuem uma placa de identificação, porém não resta estátua alguma.

Localizada no Setor de Clubes Esportivos Sul, próximo ao shopping Pier 21, diretamente ao lado da ponte Honestino Guimarães e de frente para o Pontão do Lago Sul, a Praça dos Orixás, também conhecida como Prainha, está em um dos metros quadrados mais caros e valorizados do Plano Piloto e faz parte do conjunto urbanístico de Brasília.

A Prainha

Obatalá, também conhecido como Oxalá. Considerado o criador dos seres humanos; representa a paz e a criatividade. A estátua era originalmente branca, carregava muitos adereços em volta do pescoço e na mão esquerda um cajado de metal, chamado opaxorô.

Desde os anos 1960, a Prainha, que hoje abriga a Praça dos Orixás, era um lugar de devoção e de festas religiosas. Desde essa época, é tradição que ali se celebre uma festa para Iemanjá na passagem do ano.

O líder religioso Pai Paiva, Presidente da Federação de Umbanda e Candomblé do DF, ao longo dos anos 90, esforçou-se para oficializar a Prainha como um local de devoção. Em 1990 ergueu ali uma estátua de Iemanjá, que embora não exista mais, Tatti Moreno, o artista plástico que esculpiu as obras que hoje se encontram ali, conservou seu pedestal para sustentar sua estátua da mesma figura.

Foi somente em 2000, no governo de Joaquim Roriz, que por decreto do governador, a Prainha passou a chamar-se oficialmente Praça dos Orixás e passou a existir legalmente. Pai Paiva admirava a obra de Tatti Moreno e decidiu convidá-lo para confeccionar as obras.

A Praça encontra-se dentro do conjunto urbanístico de Brasília, listado como Patrimônio Mundial pela Unesco. O GDF reconhece a Festa de Iemanjá, que ocorre no local, e a própria praça como patrimônio imaterial.

Pai Aurélio, liderança religiosa e responsável por uma casa de candomblé em Planaltina, afirma que a praça é um instrumento de cultura importante e que se encontra vulnerável: “as pessoas depredam-no e não vemos, não há câmeras”. Acrescenta que “quem comete os atos, não tem noção do que significa aquele Orixá. A intenção é realmente nos atingir. Uma perseguição que vem desde que nossos antepassados chegaram em terras brasileiras arrancados do seu leito familiar. Hoje enfrentamos de maneira mais sutil, embora severa, esse racismo.”

Ações políticas

No dia 25 de março, celebrou-se uma sessão solene, que não foi gravada, na Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) em razão do Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matriz Africana e Nações de Candomblé. Em seu discurso de abertura, presidindo a sessão, o deputado distrital Chico Vigilante (PT) afirmou a necessidade de reconhecer as lideranças das religiões de matriz africana para combater o racismo que estas sofrem.

Antes mesmo do início da sessão que iniciou-se por volta das 19h30, já não haviam mais assentos disponíveis. O foyer da plenário estava cheio. Havia jovens, idosos, pretos, brancos, mães e pais de santo. Antes das primeiras palavras do presidente da sessão, o grupo Maracatu do Boaiadeiro Boi Brilhante entrou enchendo de som e ritmo o plenário.

Após o hino nacional, Mãe Vilcilene, falando em nome do Coletivo das Iyás, discursou sobre a importância de proteger a ancestralidade e os territórios de seu povo e de sua cultura. Falou sobre a luta pela Prainha, “um espaço de troca de identidades e de conhecimento” e reforçou a reinvidicação pela revitalização do espaço. Destacou a importância dos espaços públicos “como casa para sermos ouvidos”, indicando a CLDF.

Pai Ricardo, um dos sacerdotes convidados a sentar na mesa da presidência, líder da casa de candomblé Ilê Axé Odé Erinlê, convidado a discursar na tribuna, disse poucas palavras. Afirmou a existência e a necessidade de combater o racismo religioso e disse que, tratando-se de ancestralidade, precisava passar a palavra a alguém presente na sala. Chamou Ògan Luiz Alves, um dos fotógrafos que circulava o plenário fazendo registros. Ògan afirmou: “A verdadeira homenagem seria legislar não só pela religiosidade, mas pelo povo que celebra essa religiosidade”.

Geanne Gomes, cidadã e servidora pública, em entrevista, afirmou: “é um desalento, um desrespeito supremo, são os fundamentalistas como sabemos. É necessário respeitar toda manifestação religiosa. Não somos melhores nem piores do que ninguém, mas temos nossas tradições e nossa cultura, e é necessário que sejam respeitadas. Cada Orixá, cada cor de um Orixá tem um significa, e isso precisa ser respeitado. Não é possível que haja esse vandalismo e fique tudo assim. Os orixás representam uma coletividade, são um todo, a divindade deles não se manifesta de maneira individual. Somos povos que viemos de comunidade e comunidade para nós importa. Não temos essa crença que sozinho fazemos tudo acontecer.”

Obras sem nome e sem autor

Da estátua de Ogum, Orixá guerreiro, que representa a coragem e o trabalho árduo, nada restou. O QR Code não funciona.

A maioria das obras na Praça dos Orixás não possui identificação. As que ainda conservam alguma, possuem somente o nome do Orixá e um QR Code que, quando escaneado, exibe uma página informando que ele não funciona mais. Em lugar algum há menção ao escultor das obras, Tatti Moreno.

O artista nasceu em Salvador em 1944 e faleceu em 2022. Em sua cidade natal, no Dique do Tororó, esculturas de orixás produzidas por ele flutuam sobre as águas. Também na Bahia, esculpiu em bronze o autor Jorge Amado junto de sua esposa Zelia Gattai e o cachorro do casal.

Suas obras estão espalhadas não só pelo Brasil, mas por toda América Latina. Sua produção sacra não se restringiu aos orixás, mas abrangeu também imagens de Cristo e de outros santos católicos. Na cidade de Lima, no Peru, há a estátua “Cristo del Pacífico” de 37 metros de altura, por exemplo.