“O racismo encontrou maneiras diferentes de ser praticado”

Conheça outros casos como o de Andressa e entenda por que esse tipo de discriminação talvez nunca acabe

Khalil Silva

Postado em 05/11/2021

Com o infeliz caso de racismo sofrido pela cantora Andresa Sousa, de 39 anos, na última terça-feira de outubro (26), onde a publicitária Valkíria Tavares, de 59 anos, bateu no braço da vítima e disse: “Aprende a cantar, sua negra! Essa negra precisa aprender a cantar”, o racismo ganhou a mídia de novo. Um caso de racismo acontecendo pós-movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam em português), um dos maiores movimentos negros por justiça social e conscientização, ocorrido durante a segunda metade de 2020, ainda consegue chocar a quem vê. Casos como esse trazem de volta à pauta em 2021 e mais uma vez o assunto volta a ser debatido, como uma conversa mal resolvida.

População majoritária 

O racismo é um problema que persiste na sociedade, mesmo com os dados promovidos pelo Instituto Locomotiva (Este que foi financiado pelo Carrefour, depois do caso com morte no estabelecimento de João Alberto Silveira Freias) de que 56% da população brasileira é negra ou parda, a discriminação continua em vigor. Por meio da pesquisa se confirma ainda que o preconceito racial é frequente no varejo e demais ambientes públicos, uma vez que 61% dos brasileiros presenciaram uma pessoa negra (preta ou parda) sendo humilhada ou discriminada devido à sua raça/cor em lojas, shoppings, restaurantes ou supermercados. Além disso, 69% das pessoas negras já foram seguidas por seguranças em lojas. Entre as pessoas pretas, o percentual atinge 76%. Além disso, 89% dos brasileiros reconhecem que as pessoas negras sofrem mais violência física do que as brancas.

A Secretaria Estadual de Segurança Pública de São Paulo fez um balanço com boletins de ocorrência apenas de racismo no estado, isso entre 2014 e maio de 2018. O resultado totalizou cerca de 7 mil casos registrados, na média seria 1 caso de injúria racial a cada 6 horas. No próprio informe, a secretaria se diz ciente de que existem casos que não são notificados à polícia, e que existem muito mais do que os registrados em B.O.

O cenário parece não ter se modificado mesmo com as ondas de movimentos sociais buscando seu espaço de direito e sua maneira de emitir voz por toda comunidade. O problema é que existem casos dentro do dia a dia, esses que não ganham holofote da mídia, e muitas vezes nem as vítimas tendem a denunciar. Casos como esses:

“Não me surpreende”

Maik Oliveira, de 23 anos, professor de dança e motorista de aplicativo, acha que a situação não demonstra traços de mudança: “Essa situação com a cantora não me surpreende. As pessoas não têm qualquer medo de serem presas por injúria racial. Infelizmente, eu acho que a situação nunca vai mudar. O racismo hoje encontrou maneiras diferentes de ser praticado, de se camuflar, velado, e não é por ser camuflado que não doí”.

Maik disse que adquiriu costumes para não ser abordado em shoppings: “Eu sempre mantenho minhas mãos para fora do casaco, não pego em nada, se for comprar eu aponto para alguém tirar para mim, não queria ter que fazer isso, mas é o jeito”. – Foto: Khalil Santos

Maik ainda disse que tinha várias experiências para contar sobre racismo, decidiu pelo mais recente: “Eu estava dirigindo meu carro, com passageiro atrás, vinha uma viatura da polícia, isso de noite, sem o giroflex ligado e eles estavam querendo passar. Eu não percebi que era uma viatura, e eles querendo passar só dando a seta, eles puxaram do meu lado e começaram a me xingar: “Seu preto! Vagabundo! Negão! aqui trabalhando, tá aqui querendo impedir a polícia!”, falando esse tipo de coisa. O passageiro do carro ficou chocado, eu tive que encostar o carro, dar uma respirada para continuar”.

“Racismo é cultural”

Segundo Rogel Pedro, de 29 anos, empreendedor, o racismo no Brasil é algo cultural: “Mesmo que o país seja composto pela sua maioria de pessoas negras, eu vejo que o racismo está aí de forma velada. Eu acho que no Brasil as leis para esse tipo de crime, da injúria racial, têm uma pena muito leve. Na minha opinião, as leis deviam ser mais rígidas, porque a partir do momento que a sociedade tem noção que se (alguém) cometer determinado tipo de discriminação, ela pode sofrer uma sanção mais pesada. Eu acho que elas vão pensar duas vezes antes de praticar o racismo”.

Rogel disse que estabeleceu uma regra na hora da contratação de seu pessoal: “Quando estão fazendo seleção lá, a primeira coisa que eu digo é, o cara pode chegar de chinela e bermuda aqui, você vai julgar ele pelo currículo, não por roupa, nem por cor de pele”. – Foto: Khalil Santos

Rogel pensa que é possível prevenir futuros casos: “Com educação, tem que ser mostrada a cultura, a importância dos negros dentro da sociedade, isso tem que ser trabalhado dentro das escolas. Eu mesmo sofri racismo dentro da escola, têm que ser criados projetos e campanhas. A gente por exemplo tem o Dia da Consciência Negra, mas eu vejo que não tem tanta força assim, a sociedade tem que abraçar direito dias como este”.

Não demorou muito para ele encontrar uma história em que tenha sofrido racismo de algum modo: “Eu fui em uma loja, tipo uma papelaria, nessa época eu ainda fazia faculdade, fui lá adquirir material. Quando eu entrei na loja eu comecei a perceber aquela movimentação do segurança, foi algo tão grotesco, ele ficava a três metros de distância de mim. Eu não aparentava um criminoso, eu estava bem-vestido, bem trajado, por mais que tivesse arrumado, só por ser negro gerou essa desconfiança. Foi aí que eu o abordei e fui questionar o porquê, “Não são normas da empresa, só olhando aqui, não nem te vendo”, daí você tira que era só pela minha cor mesmo.”

Rogel ainda se preocupou em ressaltar a subnotificação do racismo: “Eu acredito que existem muitas pessoas que sofrem o racismo e acabam não registrando o boletim de ocorrência, não correndo atrás. Por mais que a gente tenha números sobre o racismo, eu creio que esse número seja bem maior do que é registrado. Essa situação que aconteceu com a cantora, eu presumo que aconteça com outros profissionais, engenheiros, advogados, médicos, que no exercício do trabalho sofram racismo e acabam normalizando a situação, criam medo de gerar transtorno, desconforto no ambiente de trabalho”.

“Gosto dele assim”

Tamires Oliveira, de 19 anos, auxiliar administrativa, considera o caso de Andressa um absurdo e teme que casos como esses fiquem mais recorrentes: “Assusta um pouco. As pessoas não têm medo de irem presas, porque senão os casos não estariam tão escancarados, eles não fazem nem questão de esconder”.

Tamires acredita que todo tipo de meio para que o racismo fosse extinguido foi tomado, porém sem resultados realmente eficientes: “Já tem muita campanha e projeto, e não funciona. Eu acho que está enraizado já, carimbado, podem até ajudar a diminuir os casos, ajuda a conscientizar, mas acabar, não vai acabar, não vai acabar nunca”. – Foto: Khalil Santos

Tamires ainda falou de um traço seu que costuma atrair diversas injúrias raciais: “Eu já sofri diversas vezes falas racistas em relação ao meu cabelo. Eu fiquei a minha infância toda alisando o cabelo, porque minha mãe morria de medo da gente sofrer o que ela sofria. Eu cheguei nos meus quinze anos e meu cabelo já estava destruído de tanto alisar, de tanto escovar, aí eu decidi voltar ao normal dele. Eu já ouvi vários e vários comentários, é até surreal repetir como: “Cabelo de bombril”, “Nega maluca”, “Vou ter que levar essa menina no salão”, “Parece que você não lavou o cabelo” e coisas do gênero. As pessoas sempre perguntam se eu não quero alisar, meu cabelo é assim, e eu gosto dele assim”. 

O sonho permanece

Nenhum deles registrou boletim sobre seus devidos ocorridos. Assim como o caso recente com Andressa Sousa, casos como esses só demonstram como a sociedade ainda não aprendeu a esquecer a cor da pele na hora de se julgar o caráter e cada vez mais o sonho do Dr. King parece um pouco mais distante. 

“Eu tenho um sonho que meus quatro pequenos filhos um dia viverão em uma nação onde não serão julgados pela cor da pele, mas pelo conteúdo do seu caráter. Eu tenho um sonho hoje”. – Dr. Martin Luther King Jr. – 28 de agosto de 1963.