Cervejas, capivaras e natureza: conheça a cervejaria O Trombudo

No Lago Oeste, cervejaria tematizada por capivaras se destaca pelo esmero e criatividade do mestre cervejeiro, além de contar com uma linda vista e espaço aconchegante

Vitor Lacerda

Postado em 31/05/2024

Poucas pessoas conhecem o Núcleo Rural do Lago Oeste, também chamado de Lago Oeste, uma região com população menor que 10.000 habitantes (de acordo com dados de 2018, Portal da Câmara dos Deputados) e área de 4.681 hectares. Para chegar lá, basta pegar a saída norte e seguir até o balão do Colorado e então seguir pela DF-001 para se encontrar nessas chácaras que fazem parte da Região Administrativa de Sobradinho. A DF-001 é uma via especial: de um lado há o Parque Nacional de Brasília; e, do outro, há a Reserva Biológica da Contagem.

Essa reserva, além de abrigar espécies animais e vegetais ameaçadas de extinção, também tem o importante papel de proteger duas fontes de captação de água que abastecem a região de Sobradinho e fazem parte de um corredor biológico ecológico que liga o Parque Nacional de Brasília à Bacia do Rio Maranhão, que faz parte da Bacia Amazônica.

Vista do Lago Oeste na entrada da Cervejaria O Trombudo

O Lago Oeste tem atraído muitos interessados pelo turismo rural oferecido pelos empreendimentos da região, como hotéis fazenda, espaços para eventos e restaurantes.

Entre eles há a Cervejaria O Trombudo, comandada pelo mestre cervejeiro José Roberto Moreira. Além das cervejas, o cardápio de bebidas ainda conta com vinhos e outras opções. Para comer, o chefe de cozinha Marcus Ricardo, responsável pelo Espaço Taim, oferece hambúrgueres, com opções vegetarianas, e um interessante chorizo recheado, além de opções sazonais em datas comemorativas.

O nome “O Trombudo” tem relação com a tematização das cervejas e do espaço que gira em torno das capivaras, que foram objeto de estudo e de interesse do mestre cervejeiro por muitos anos ao longo de sua vida. O trombudo, como explica José Roberto, é o nome dado ao macho dominante de um grupo de capivaras: todas as capivaras possuem uma glândula acima da narina, sendo mais pronunciada nos machos e especialmente no macho dominante.

A cervejaria conta com um belo espaço externo e com uma vista impressionante de frente para um vale com cânions imponentes. Ao anoitecer, uma ilumição suave mantém o clima aconchegante na área externa, e há uma pequena área para acender uma fogueira nas noites mais frias. Na área interna, as paredes são preenchidas com vários quadros dos mais diversos estilos, mas todos envolvem capivaras: em um, há uma capivara sentada do lado de fora de sua casa tomando uma cerveja; em outro, há um grande grupo de capivaras, com carros e pranchas de surfe, curtindo a orla do Lago Paranoá.

Entre as cervejas mais pedidas destacam-se a Cacó e a Beque, respectivamente uma Fruit IPA e uma Cream Ale. A Cacó possui um delicioso aroma frutado e sabor refrescante. O amargor de uma IPA se faz presente, mas as notas da adição de laranja e de maracujá são bem perceptíveis, trazendo um frescor muito agradável. Já a Beque é uma cerveja leve e de baixo teor alcóolico, contando com um corpo aveludado que torna única a experiência de tomá-la.

Para comer, há o hambúrguer vegetariano, feito com berinjela, que faz tanto sucesso entre os clientes que até os não-vegetarianos costumam pedi-lo. Outro prato de destaque preparado pelo chefe Marcus é o chorizo recheado, uma especialidade da casa. Há ainda a opção de pedir um pastel simples, mas muito bem feito, ou uma porção de fritas bem sequinhas por fora e suculentas por dentro.

As cervejas

José Roberto é um mestre cervejeiro com muita criatividade e que segue um rigor científico no desenvolvimento das receitas. Em sua Helles de mandioca, intitulada Aipim, o ponto de partida é uma receita de cerveja alemã. Entretanto, para comemorar o Dia dos Povos Indígenas, decidiu misturar a mandioca com o lúpulo alemão.

Outra das receitas interessantes desenvolvidas nesse ano foi a Tapiti, uma Imperial Stout, feita para comemorar a Páscoa. Nela, além de adicionar aveia em flocos e nibs de cacau, José Roberto ainda optou por usar 7 variedades de malte para criar uma cerveja encorpada e cremosa.

Alguns dos rótulos produzidos por José Roberto ao longo dos anos. Sua filha, Lúcia, designer, ocasionalmente participa da criação da identidade visual dos rótulos. Na foto, o rótulo da Aipim e da Tapiti foram criações dela.

O mestre cervejeiro afirma que o desafio foi algo que o atraiu para a tarefa de desenvolver receitas de cerveja. No princípio, conta ele, havia certas partes do processo que ele não entendia, simplesmente seguia, porque era assim que mandava a receita. Entretanto, cientista por formação, buscou resposta para todas essas dúvidas que possuía, procurando entender a fundo cada parte do processo. Ademais, criativo e curioso, buscava sempre experimentar com diferentes ingredientes. Hoje, com mais de 162 lotes já produzidos, continua se desafiando, preparando estilos pouco conhecidos ou reinventando estilos já consagrados.

As capivaras

José Roberto nasceu no Rio de Janeiro em 1955, mas cresceu em Brasília. Sempre interessado por animais, desejava cursar veterinária na universidade. Entretanto, a Universidade de Brasília não possuía o curso na época, que seria criado somente em 1996. Então, por influência de sua mãe, Roberto decidiu cursar Agronomia, ingressando na UnB em 1974.

Após a graduação, foi para Piracicaba, em São Paulo, fazer um mestrado em nutrição animal com foco em suínos. Após o mestrado, entrou para a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e foi trabalhar em um Campo Experimental no estado do Pará, próximo a Santarém, onde trabalhava com búfalos.

Enquanto trabalhava lá, imerso na fauna e flora amazônicas, em correspondência com seu orientador de mestrado, ficou sabendo que este estava pesquisando a criação de capivaras em cativeiro para consumo alimentício. José Roberto conta que no alemão o animal é conhecido com porco da água (Wasserschwein), embora seja um roedor. Além disso, na Venezuela, o animal, conhecido com chiguire, é consumido há centenas de anos. Roberto conta que seu consumo é inclusive permitido pelo Vaticano durante a semana santa desde 1784, pois, por ser um animal que gosta de viver sempre perto da água, ele é considerado como um peixe.

Uma das artes nas paredes da cervejaria.

Essa pesquisa de seu orientador lhe interessou muito e, vendo as capivaras que cresciam livremente na região amazônica, pensou que o manejo sustentável de capivaras criadas livremente seria mais economicamente viável. No meio da bibliografia que adquiriu na época, ficou sabendo do trabalho do finlandês Juhani Ojasti, que havia sido contratado pelo governo venezuelano para pesquisar o manejo sustentável da capivara, pois o país estava passando por uma crise alimentar na época. Foi aí que Roberto pensou em fazer algo similar na Amazônia brasileira. Entretanto, afirma ele, sentiu que necessitava de mais conhecimentos de ecologia para poder elaborar melhor essa sua tese.

Pensando em um doutorado, encontrou o trabalho do ecologista escocês David Macdonald, que havia recentemente publicado um trabalho envolvendo capivaras e que havia orientado um estudante venezuelano que também desenvolveu uma tese sobre o assunto. Na Amazônia, Roberto escreveu a ele uma carta, contando suas intenções e projetos. Coincidentemente, Macdonald visitaria a Ilha de Marajó em breve e combinou de encontrar Roberto. Foi o começo de uma parceria que levaria Roberto à Universidade de Oxford.

Seus anos de doutorado foram divididos entre o clima temperado britânico e o equatorial da Ilha de Marajó. Foi para a Inglaterra em 1989, fez os preparativos para sua pesquisa, e então passou um ano e meio coletando dados no município do Soure. Afirma que na maior parte do tempo era “eu e as capivaras”. Nessas vindas, se hospedava em uma fazenda e, no tempo que não passava com as capivaras, ainda alfabetizou crianças e adultos.

Casamento e retorno ao Brasil

De volta a Oxford, em 1994, conheceu Susan Casement, que prefere que a chamem de Susie. Nascida em Ballycastle, uma pequena cidade costeira no norte da Irlanda do Norte, Susie estudou língua inglesa e literatura em Edimburgo, na Escócia. Mudou-se para Londres, buscando um emprego na área de editoração de livros. Entrou para uma editora que em 1988 decidiu mudar-se para Oxford. Passou 3 anos lá antes de decidir viver uma temporada ensinando inglês em Budapeste, capital da Hungria. Conta que foi uma experiência incrível, pois a cidade possuía uma vida cultural abundante e economicamente acessível.

Quando voltou à Inglaterra, passou 3 anos trabalhando como editora na Oxford University Press. Nesse emprego, parte de seu trabalho envolvia editar novas edições de clássicos com novas traduções, introduções e notas de obras de Platão a Émile Zola.

Nessa época, conheceu Roberto em uma apresentação da missa de Requiem de Mozart. Na ocasião, Roberto namorava outra pessoa e, hoje, brincam que a missa fúnebre foi para celebrar o fim daquele relacionamento.

Em 1995, Roberto pediu-a em casamento, apresentou sua tese e retornou ao Brasil. Susie veio visitá-lo e conhecer seu futuro lar em agosto daquele ano. Recordando, conta que ficou “horrorizada com o clima” de Brasília nessa época. Dentre os possíveis lugares em que poderiam morar, Roberto apresentou a ela o Lago Oeste, e ela afirmou que ali seria o único lugar que ela ficaria feliz em morar.

Vista ao entardecer

Roberto voltou a trabalhar na Embrapa até se aposentar em 2017. Susie, por um contato na editora onde trabalhava, conseguiu uma oportunidade de emprego em Brasília: trabalharia com uma das maiores clientes da editora, a inglesa Sara Walker, professora do Instituto Rio Branco (IRBr) desde 1977, e ensinaria junto com ela no IRBr.

Após se aposentar, Roberto se interessou cada vez mais pela fabricação de cervejas, até abrir a Cervejaria O Trombudo no final de 2023. Susie, além de ajudar no manejo do caixa e no atendimento aos clientes, faz um ótimo trabalho de divulgação e de acolhimento; na ocasião da reportagem havia um grande grupo de alunos do IRBr sentado na área externa durante toda a tarde até o pôr do sol.

Quando perguntado sobre a cerveja que mais tem orgulho de ter produzido, Roberto afirmou que foi uma Stout, por duas razões. Uma delas foi por ter lhe rendido um prêmio. A outra, conta, é que buscava fazer uma cerveja que agradasse a Susie, que não gosta de cervejas. Havia feito algumas tentativas, até que tentou fazer um estilo que já fosse familiar a ela, já que as stouts são tradicionais no Reino Unido. Conseguiu e ainda ganhou um prêmio de brinde.