Obsolescência programada e a dificuldade de consertar novos aparelhos

Numa realidade onde a obsolescência programada e a busca por baixos custos produção ditam os métodos de produção, técnicos especializados têm dificuldade de fazer reparos que eram extremamente simples há 20 anos

Vitor Lacerda

Postado em 22/05/2024

Um dos desafios que o mundo enfrenta atualmente, com consequências para o futuro, é o fenômeno da obsolescência programada. Dentro desse fenômeno, ainda existe outra estratégia de mercado que consiste em dificultar e, frequentemente, impossibilitar o reparo do produto pelo consumidor e até por um técnico especializado.

Carlos, pai de Gideão e dono da Hello-Maq, realizando um reparo em um forno micro-ondas

A obsolescência programada é uma decisão consciente do fabricante, em que ele busca que seu produto tenha falhas intencionais ou falte em recursos já disponíveis, para que o consumidor sempre busque atualizar o produto. Um dos primeiros registros que se tem desse fenômeno ocorreu na década de 1920, no mercado automotivo estadunidense. O mercado estava atingindo um ponto de saturação; o número de vendas de carros estava caindo pois a maioria dos compradores já havia adquirido um carro e estava satisfeita com o que possuía. Diante disso, a General Motors decidiu que todo ano faria certas mudanças nos seus carros para que os consumidores sentissem que deveriam periodicamente trocar de carro.

Hoje, 100 anos depois, o mesmo vem ocorrendo com a maioria dos bens de consumo industrializados. Os smartphones, por via de regra, têm sua vida útil limitada pela vida útil da bateria, que 20 anos atrás era possível ser substituída pelo próprio consumidor mas, hoje, somente técnicos especializados e com ferramentas especializadas podem fazer esse reparo.

O contexto do Brasil

Gideão e José Ferreira; juntos, consertam de ventiladores e aspiradores de pó a toca-discos e videogames

O Brasil, 9º maior mercado consumidor do mundo de acordo com o Banco Mundial, tem considerável carência de suporte técnico para produtos vendidos em larga escala para o público brasileiro.

Em 2021, a Sony fechou sua fábrica no Brasil e deixou de vender TVs, câmeras e produtos de aúdio no país. Isso deixou todos os proprietários de produtos da marca carentes de amparo oficial para reparos e consertos. A corporação japonesa, fabricante dos videogames PlayStation, não oferece nenhum serviço de reparo aos clientes para esses produtos vendidos em grandes números, possuindo somente uma representação terceirizada que cobre a obrigação de oferecer 1 ano de garantia aos produtos, exigido pelo Código de Defesa do Consumidor. No mercado automotivo, houve recentemente o caso da caminhonete Dodge Ram Rampage que, 5 meses após chegar as lojas, já sofria com falta de peças.

Embora os fabricantes ofereçam pouco ou nenhum serviço de manutenção ao consumidor brasileiro, o consumidor brasileiro tem alto interesse no reparo de seus produtos. A plataforma de contratação de serviços GetNinjas registrou uma forte alta na busca por serviços de reparos de equipamentos eletrônicos ao longo da pandemia e esse interesse se manteve em dados divulgados no primeiro semestre de 2023.

Além disso, o CEBRAC (Centro Brasileiro de Cursos) divulgou que o cursos de manutenção de computadores e de celulares teve um aumento na procura nos últimos 4 anos.

Raridades: técnicos e aparelhos consertáveis

José Ferreira da Silva, de 78 anos, técnico de eletrônica, possui mais de 60 anos de experiência na área. Em 1964, dentro da Marinha Brasileira, especializou-se em eletrônica, num curso de 18 meses, onde tinha aulas todos os dias das 8h às 17h. Em 1970, se aperfeiçoou, novamente, num curso de 18 meses com a mesma carga horária. Na Marinha, uma de suas atribuições ao longo da carreira foi fazer os reparos e revisões de aparelhos de sonar da frota marítima brasileira.

Interior de um CD player Philips fabricado no Brasil no final dos anos 1980; os circuitos integrados (CIs; peças pretas com diversas “pernas”) eram substituíveis por um técnico caso falhassem

Hoje, aposentado, conserta toda sorte de eletrodomésticos: televisões, fornos micro-ondas, ventiladores, ferros de passar roupa, aparelhos de som e até videogames. Quando um cliente leva algo que necessita de um pouco mais de tempo ou de peças escassas ele diz: “o difícil a gente faz logo; o impossível demora um pouco.”

Junto com ele, trabalha diariamente Gideão José de Moreira, de 38 anos. Embora tenha se formado em Marketing, Gideão cresceu com seu pai fazendo reparos eletrônicos, e afirma que se recorda do cheiro de solda na sua infância como um cheiro bom.

Ferro de solda ao lado de um CI de um forno micro-ondas; quando um CI com tantas “pernas” assim falha, na maioria das vezes, a única solução é substituir toda a placa.

Na oficina onde trabalham, no subsolo da Hello-Maq, na W3 Norte, loja que oferece assistência técnica, a princípio, para máquinas de lavar roupa, estão sempre ocupados, quase sempre, com algum eletrodoméstico. Enquanto trabalham num micro-ondas, suspeitando que o defeito seja no magnétron, peça mais importante do aparelho, justo por ser a responsável pelo aquecimento, Gideão afirma: “a solda está acabando. Hoje em dia você não troca mais o componente, você troca a placa inteira. Se um circuito integrado deu defeito, condena a placa inteira.”

José Ferreira, se recordando de outros momentos da sua vida profissional, afirma que antigamente, antes dos circuitos integrados estarem presentes em todos os aparelhos, raramente se condenava um equipamento: “a válvula, você trocava, o transistor, que foi a evolução, você trocava, mas o circuito integrado não tem conserto.”

De acordo com ambos os técnicos, a predominância e a onipresença dos circuitos integrados e dos SMDs (do inglês, surface-mount device, um processo de fabricação que permite maior automação e miniaturização dos circuitos eletrônicos) são processos inevitáveis e irreversíveis. A tecnologia continuará caminhando nessa direção, pois a automação, a redução de custos e a miniaturização são objetivos prezados tanto pelos fabricantes quanto pelos consumidores. Entretanto, Gideão diz que “o tanto de lixo que isso gera é enorme, não é sustentável.”