Reinvenções da bruxa no cinema

Segunda edição da mostra que remonta à construção da figura da bruxa no cinema chega ao CCBB de Brasília

Jéssica Sousa

Postado em 23/04/2024

A segunda edição de ‘‘Mulheres Mágicas: Reinvenções da Bruxa no Cinema’’ apresenta uma curadoria de obras que remontam à construção dessa figura popular do cinema, destacando cineastas mulheres e perspectivas femininas no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) de Brasília. De acordo com seu site oficial, a mostra busca apresentar a bruxa em sua complexidade, com filmes de várias épocas, países e modos de realização, oferecendo diferentes formas de representação dos corpos e saberes femininos em imagem. A programação se divide em dois eixos: pelo imaginário clássico das bruxas; e suas reinvenções contemporâneas. As exibições acompanham um catálogo virtual de 27 filmes, debates e uma oficina gratuita. A mostra segue até 20 de maio.

O CCBB brasiliense é uma obra modernista projetada por Oscar Niemeyer. O ambiente apresenta diversificada programação artística, abrangendo exposições de arte, espetáculos teatrais, apresentações musicais, mostras de cinema e atividades educativas.

Raízes espirituais e sociais

A bruxaria, uma prática pagã ancestral e multifacetada, permeia a história da humanidade, abrangendo diversas tradições culturais e crenças. Atualmente, existem cerca de 300 mil bruxos no Brasil, de acordo com a organização União Wicca Brasil, se classificando como uma das crenças que mais crescem.

O surgimento da prática, enraizada em tempos pré-históricos, evoluiu ao longo dos séculos, adquirindo diferentes formas e significados em várias culturas ao redor do mundo. Este fenômeno complexo envolve a manipulação de energias naturais, a realização de rituais mágicos e a busca pela conexão com o divino ou forças espirituais. 

No contexto da cultura popular ocidental, as bruxas são frequentemente retratadas como figuras enigmáticas e poderosas, envoltas em vestes escuras e dotadas de habilidades mágicas. Essas representações, como evidenciado em clássicos como “Branca de Neve e os Sete Anões”, muitas vezes reforçam estereótipos, como o da bruxa vaidosa e calculista. A cineasta Dácia Ibiapina, especialista em Cinema e TV pela Escola de Cinema e TV de San Antonio de los Baños/Cuba, explica que o cinema utiliza esses elementos para destacar características de conceitos culturais pré-existentes, sem necessariamente haver intenção de retratar a realidade.

Relatos 

Por não ser uma religião tradicional, com dogmas estritamente rígidos e pré-definidos, os participantes possuem caminhos, vertentes e filosofias variadas. Priscila Ferraz Florêncio, fundadora da empresa “Diário da Bruxa”, ensina sobre a história e os conceitos da bruxaria para os mais de 340 mil interessados que estão inscritos em seu canal do YouTube. Pri Ferraz, como prefere ser chamada, é formada em jornalismo e atualmente atua como taróloga. Ela relata sua visão espiritual: ‘’Eu sou uma bruxa pagã. Toda bruxa vai ter uma resposta diferente sobre o que é a bruxaria. Eu vejo como um caminho espiritual e filosofia de vida, no qual o praticante se enxerga como parte e reflexo da natureza, atribuindo-a um sentido espiritual; O outono, por exemplo, é aquele ciclo no qual as folhas caem, e há uma colheita dos frutos. Se a terra que me rodeia está passando por esse ciclo, eu, que também sou parte da natureza, incorporo esse simbolismo: quais são as limpezas que eu posso fazer na minha vida? O que eu preciso me desapegar?’’

O cinema apresenta reflexos da sociedade, como explicado por Priscila. Ela analisa clássicos da Disney com seus contextos históricos, e aborda a relação da mulher que buscava independência com a bruxa. Priscila aponta um padrão: nesses filmes, a bruxa é retratada como uma mulher solitária e poderosa, mas muito má, gerando, de forma velada, uma relação entre a mulher que não possuía o apoio masculino dentro da sociedade patriarcal e o estereótipo de bruxa má no imaginário popular.

A jornalista explica a relação entre os elementos que caracterizam a bruxa no entretenimento com crenças pagãs reais. Há, por exemplo, a associação da bruxa a vassoura, e, em culturas antigas, principalmente no paganismo italiano, haviam danças nas quais as mulheres pulavam de vassoura. Ela ressalta que essa representação, consequentemente, demoniza fundamentos culturais e sociais presentes no paganismo.

Wesley Cordeiro Nardelli, de 26 anos, é tarólogo e magista, e segue a vertente da bruxaria eclética. Ele explica que a bruxaria em sua vida é um ofício, que se tornou parte de sua evolução espiritual: “Na época da pandemia me questionei muito sobre o que eu acreditava e pensava, foi quando eu me reencontrei dentro desse caminho”.

Wesley lida com situações de intolerância religiosa dentro de sua família e nas redes sociais, e relata já ter sido taxado como perdido e perturbado. A comunidade neopagã se esforça para combater esses estereótipos, e Wesley esclarece que a intenção é mostrar para as pessoas que a bruxaria é uma prática digna de respeito como qualquer outra: “O mais importante é resgatar o que foi tirado de nossos ancestrais e poder trazer a liberdade de todos poderem cultuar e acreditar no que quiserem”.

Milena, também conhecida como Sol de Ísis, é uma influenciadora de 26 anos e praticante da bruxaria ancestral. Ela explica que a bruxaria é uma filosofia de vida que honra as tradições ancestrais, e que a imagem negativa da bruxa nos meios de entretenimento afeta a percepção da sociedade sobre as religiões neopagãs, perpetuando estigmas e preconceitos injustificados.

“A mulher era colocada dentro de um estereótipo nocivo, elas não tinham o direito de ser quem eram, porque eram mortas. Hoje em dia, as consequências são muito mais simbólicas, apesar de ainda haver casos de violência física”, ressalta Milena.

O estereótipo da bruxa maligna também ecoa na história, especialmente durante a Inquisição, quando mulheres curandeiras e parteiras foram injustamente associadas à bruxaria e perseguidas. Este período sombrio da história deixou um legado de violência e discriminação que ressoa até os dias de hoje, explica Priscila Ferraz: ‘‘Muito do paganismo foi perdido pelo tempo pelo fato de não ser litúrgico. Quando vemos nos documentos antigos, como os da Inquisição, vemos mulheres que diziam que realmente eram bruxas. Estamos vendo o relato de inquisidores sobre isso, eles têm o poder da manipulação desse material. Por que o paganismo foi tão apagado? Porque esse processo foi feito por litúrgicos, que dominavam os meios de comunicação, os registros, enquanto o paganismo era totalmente empírico, passado de mãe para filha, entre as famílias’’. Priscila explica que muitos conhecimentos foram perdidos com o tempo, e hoje em dia estão sendo resgatados, por livros, registros e pela presença da voz ativa da comunidade na internet e outros meios de comunicação. Ela ressalta que a bruxaria já é um caminho espiritual influenciado pelo olhar do meio, principalmente pela visão da inquisição sobre a bruxa, a cultura cinematográfica apenas adapta e utiliza esses conceitos nas obras.

Apesar dos avanços sociais, o preconceito persiste, alimentado por representações distorcidas da bruxaria na cultura popular. Este estigma, muitas vezes baseado em mitos e folclores, é reforçado por obras de ficção, contribuindo para a marginalização das mulheres e práticas espirituais alternativas.

“Quando nós dizemos que somos bruxas, somos descredibilizadas, porque as pessoas associam à essa imagem de cinema, acham que a gente faz feitiço com fumaça, que sabemos levitar, e não tem nada a ver com isso. Elas também imediatamente associam a bruxaria a algo ruim, satanista, demoníaco, que é como a prática é representada popularmente. Nós não acreditamos no diabo cristão, vemos a figura do diabo como um símbolo de resistência, e com conceitos muito mais internos, como o conceito de luxúria, inveja, etc.”, explica Sol.

Priscila Ferraz explica como a bruxaria é praticada no dia-a-dia, esclarecendo que a prática não tem que ser trabalhosa e cheia de instrumentos, e que o costume já está presente na cultura brasileira, marcada por sincretismo religioso: “Comer um morango refletindo e se conectando com o simbolismo da lua é uma forma de ritual, assim como colocar aroma de café no ambiente para se concentrar e estudar, ou colocar sal grosso perto da porta para limpar a casa de energias negativas. Muita gente faz rituais no ano-novo e nem sabe, colocando roupa de uma determinada cor com uma intenção definida.”

Para aqueles que se interessam pela bruxaria mas temem a intolerância, Wesley diz: “Não se prenda a costumes e crenças limitantes, acima de tudo precisamos de pessoas com coragem para falar abertamente sobre nossa ancestralidade e resgatar nossa fé.”