Infância com telas: famílias agem para ir na contramão dessa tendência

Quase metade das crianças brasileiras possuem um celular próprio, mas existem pais que tentam proporcionar a seus filhos uma infância mais distante das telas

Vitor Lacerda

Postado em 21/03/2024

Ir ao parque é uma das atividades favoritas das crianças entrevistadas
Fotógrafo: Cottonbro Studio – Pexels

Em um cenário que aterroriza muitos pais e mães, existem muitos que se esforçam ao máximo para ajudar seus filhos e filhas a crescerem de maneira mais similar à maneira como eles mesmos cresceram, longe das telas das televisões e dos celulares. 

Criar um filho longe das telas nunca foi tão difícil quanto hoje. Segundo a pesquisa Panorama Mobile Time/Opinion Box, 44% das crianças brasileiras entre 0 e 12 anos já possuem um celular próprio. A média de uso diário apontada pela pesquisa é de 3 horas e 53 minutos. No grupo de crianças que possuem entre 10 e 12 anos essa média atinge 4 horas e 46 minutos diários. 

As telas se tornaram onipresentes. Em 1977, uma televisão colorida da marca Colorado custava, em preços atuais, R$ 9.709. Atualmente, por esse preço, pode-se comprar 4 televisores de 55 polegadas de alta resolução. E, se antes, ter uma TV em casa, ainda mais em cores, já era um luxo, hoje é fácil perder as contas de quantas telas tem-se em casa, com programação 24 horas e acesso à internet. Foi-se o tempo em que as crianças compartilhavam do mesmo aparelho com os pais ou com seus irmãos. 

Apesar dessa acessibilidade, hoje existem diversos estudos que apontam os malefícios do excesso de exposição a telas para adultos e sobretudo para crianças. Além dos impactos fisiológicos que as telas podem causar, prejudicando o sono e desregulando o controle de estresse, por exemplo, tratando-se de menores, ainda existe o risco de expô-las a diversos perigos presentes em jogos voltados para esse público infantil, como Roblox, que em 2020 divulgou que mais de metade das crianças estadunidenses de 9 a 12 anos jogavam ativamente e onde casos de extorsão e de pedofilia são recorrentes. 

Infância à moda antiga

Embora as telas estejam hoje em todos os cantos e cômodos, é fácil esquecer que até pouco tempo atrás vivia-se sem celular, sem televisão e até sem rádio. Ulisses Papa (44 anos), arquiteto e pai de Bento (3 anos) e Gregório (6 meses), tenta criar seus filhos de maneira similar a que cresceu. Ele se recorda de sua infância no interior, no sul do Brasil, de passar o dia no quintal brincando com carrinhos, com bicicleta, com carrinho de rolimã. Afirma que a televisão não teve muita presença em sua infância e que, se comparada com as outras atividades e brincadeiras, achava-a entediante. 

Similarmente, Thiago Brandão (40 anos), jornalista e pai de Francisco (14 anos), e Guillaume Rodenas (47 anos), professor e pai de Valentina (9 anos), se recordam da própria infância. Thiago cresceu em Planaltina e Guillaume em uma pequena cidade no sudeste da França. 

Thiago conta que soltava pipa com seus tios, que adorava subir nas árvores da casa onde cresceu, jogar futebol, basquete, xadrez e recorda-se de caminhar até a banca aos domingos com seu pai: “Mais do que passatempos, essas atividades eram realmente parte de um processo de formação”, afirma. Sequer menciona a televisão em suas recordações.

Apesar de ter crescido em outro país, Guillaume também conta que em sua infância no campo, morava em uma casa, e que brincava com seu irmão, jogava futebol, tênis e esquiava no inverno. Adorava ler quadrinhos e a televisão era presente somente durante as férias. 

Crescer no século XXI 

O iPad é um dos aparelhos preferidos das crianças. Existem muitos jogos que as têm como público alvo, como Roblox e Fortnite
Fotógrafa: Karolina Grabowska – Pexels

Por mais diferente e complexo que seja o mundo atual, o exemplo dos pais, assim como no caso da alimentação, ainda é um fator extremamente influente e recorrente nos casos das famílias que tentam criar seus filhos longe das telas. 

Dentre os entrevistados, todos afirmaram que a televisão não faz parte de sua rotina diária e citaram a leitura como uma das principais atividades de lazer. 

Tratando-se das atividades das crianças, as mais comuns são passeios ao parque, esportes, jogos sociais e de tabuleiro. 

Guillaume, pai de Valentina, que hoje tem 9 anos, destaca que valoriza atividades criativas e que entre as atividades da filha, estão o desenho e o origami, por exemplo. 

Thiago, pai de Francisco, que tem 14 anos, diz que atualmente busca motivar seu filho a explorar os assuntos ou atividades pelos quais demonstra interesse: “Evito preencher todo o tempo livre dele com atividades. Ele tem liberdade para fazer escolhas; apenas tentamos orientá-lo sobre como fazê-las.”

Apesar de seus filhos serem bem mais novos, Ulisses afirma de maneira similar que, tratando-se de Bento (3 anos), também respeita os desejos e iniciativas do filho: “Fora da escola, de noite ou nos finais de semana, participamos de brincadeiras com ele. Brincadeiras que ele tem iniciativa, não que cheguemos, escolhemos a brincadeira e colocamos, pois nem sempre ele adere. Ele gosta muito de carrinhos e quebra-cabeças, então estamos sempre próximos a ele fazendo esse tipo de coisa. Às vezes até pular na cama, esse tipo de coisa de criança.”

Equilíbrio, moderação e confiança nos filhos

De acordo com a Academia Americana de Pediatria, para bebês até 18 meses, é recomendado nenhum contato com telas. De 2 a 5 anos, recomenda-se limitar o contato com telas a 1 hora por dia 6. 

Instrumentos musicais são ótimos para desenvolver a coordenação motora e para entreter
Fotógrafa: Karolina Grabowska – Pexels

Ulisses conta que com seu filho Bento, de 3 anos, eles ocasionalmente assistem a óperas e a concertos aos finais de semana. Ele argumenta que, diferente da maioria dos desenhos animados, as óperas e concertos possuem uma montagem (edição de vídeo) mais lenta, os cenários também mudam mais lentamente e, além disso, é um contato com a música para seu filho. O pai de Bento narra que ocasionalmente encontra seu menino cantarolando algo que escutou, dançando ou até pegando um CD na prateleira e colocando para tocar. 

Guillaume, de maneira similar, conta que Valentina, de 9 anos, assiste com regularidade a algumas séries ou filmes, mas, não sendo um comportamento compulsivo, não é algo que o preocupa como pai. Além disso, Valentina começou a usar o celular recentemente: “sua atração recente pelo celular está ligada aos amigos da escola”, diz o pai. Ele acredita que a filha vive uma vida social saudável sem os ambientes virtuais, mas que a atenção dos pais para a vida social dos filhos é importante. 

Já Francisco, filho de Thiago, quando tinha seus 12 anos, começou a se interessar por jogos online; eram momentos de se divertir com seus amigos. Nada que preocupou seu pai, que afirma que, embora as telas façam hoje parte da rotina de seu filho, elas não possuem protagonismo em seu cotidiano. Ademais, afirma que acredita que seu filho utilize o celular com moderação para os padrões atuais, mesmo que ele, como pai, não exerça controle ativo sobre isso.