Pelo direito de ser cuidado: conheça o trabalho dos abrigos de animais no DF

Os abrigos funcionam por meio de voluntariado e os protetores dos animais relatam inúmeras dificuldades, como a superlotação, alta da ração e baixa nas adoções

Reportagem especial

Postado em 01/07/2022

Por Aline Gouveia, Camila Saldanha, Rafaela Alves e Samara Lim

Os abrigos de animais espalhados pelo Distrito Federal têm a função de acolher bichos abandonados e que vivem nas ruas. Esses espaços oferecem água, ração, local seguro para dormir e eventuais cuidados médicos. Com a inexistência de abrigos públicos, os protetores de animais criam espaços de acolhimento. O trabalho desenvolvido nesses locais é voluntário e os custos mensais de manutenção, equipamentos e comida são atendidos por doações. Periodicamente, os abrigos do DF organizam feiras para promover a adoção responsável, possibilitando um novo lar aos animais. No entanto, o alto número de abandono e a falta de apoio governamental contribuem para a superlotação e falta de recursos nesses espaços.

Os animais têm direitos

Atenção, proteção e viver livre em ambientes naturais de cada espécie são alguns dos direitos estabelecidos pela Declaração Universal dos Direitos dos Animais. O documento foi construído por ativistas e organizações de defesa ambiental ao redor do mundo e apresentado à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em outubro de 1978, sendo uma referência internacional para a formulação de leis que visem a proteção dos animais. De acordo com Vanessa Negrini, ativista e doutora em políticas de comunicação e cultura, esses direitos não dizem respeito apenas a cães e gatos. “A gente tem que olhar a pauta dos direitos animais como um todo, temos o Ibama, o ICMBio [Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade] e todos os órgãos de proteção animal e ambiental que sofreram esvaziamento nos últimos anos”, alerta Vanessa, que também é pré-candidata a deputada federal.

Em 2012, a Universidade de Cambridge reconheceu a senciência animal. Isso significa dizer que eles sentem de maneira consciente. “A ausência de um neocórtex não parece impedir que um organismo experimente estados afetivos. Evidências convergentes indicam que animais não humanos têm os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos dos estados de consciência juntamente com a capacidade de exibir comportamentos intencionais”, diz um trecho do documento. Para Vanessa Negrini, esse reconhecimento científico é importante, pois evidencia que as demandas de atenção aos animais não são apenas fisiológicas. “O animal também tem o direito a ser respeitado nas suas necessidades emocionais e psíquicas, porque eles amam e sentem”, afirma.

No entanto, de acordo com a Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal, entre 2020 e 2021, aumentou em 22% o índice de maus-tratos contra os animais no DF, e a maioria dos casos de abandono vêm de antigos donos. Mesmo com dados da Polícia Civil, que revelaram em março um aumento de 64% nas denúncias do DF e entorno, a taxa de abandono não diminuiu e sim aumentou. Vanessa Negrini explica que isso acontece porque mesmo depois de comprovada a agressão, não existe um abrigo público ou uma política organizada de resgate, e como consequência disso, os animais continuam sob a dependência dos agressores. 

“Cada vez mais as pessoas estão entendendo a pauta dos direitos animais como prioritária e exigindo dos governantes a formulação de políticas públicas para o bem estar animal, para resguardar os direitos animais.”

Palavra da especialista: Vanessa Negrini, ativista  e doutora em políticas de comunicação

Respeite, cuide, adote

Um levantamento da Confederação Brasileira de Proteção Animal, realizado em 2021, mostra que existem mais de 700 mil animais abandonados pelas ruas do Distrito Federal. Sem um lar, eles passam fome, sede, frio e enfrentam perigos como acidentes ou maus-tratos. Em contrapartida, de acordo com dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), divulgados em 2020 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 47,9 milhões de domicílios brasileiros possuem gatos ou cachorros.

No entanto, ter um lar não pressupõe conforto e segurança, pois há registros de violência e abandono por parte dos próprios tutores. Sendo assim, para tentar assegurar o bem-estar e os direitos dos animais surgem os abrigos. Esses espaços têm o objetivo de acolher e cuidar de bichos abandonados ou maltratados. Apesar disso, como parte dos abrigos funcionam por meio de voluntariado, eles enfrentam superlotação, endividamento e falta de recursos.

“A gente apaga fogo com ventania, todo dia é uma luta”, afirma Wellington Fabiano, vice-presidente do abrigo Flora e Fauna, ao comentar sobre os desafios que o espaço enfrenta. Localizado no Gama e fundado em 2005, o abrigo recebe cerca de 600 a 800 pedidos de resgate por mês, sem contar os casos de abandono. Com o retorno às atividades presenciais, o número de cães e gatos rejeitados aumentou. Wellington ressalta que no início da pandemia a procura foi significativa, mas depois as pessoas foram alegando que não tinham mais condições de cuidar do animal. “O abrigo Flora e Fauna não saiu doando para qualquer um que chegasse, dificultamos um pouco a adoção, para ver se a pessoa realmente queria ou não”, explica.

O consumo mensal de ração no abrigo é de, aproximadamente, 9 toneladas. “Hoje a principal dificuldade é a ração, o preço está muito alto, então estamos passando bastante apuros, nosso consumo por dia são 9 sacos de 25kg”, diz o vice-presidente. Além disso, o local também tem dívidas com clínicas veterinárias, em razão da necessidade de procedimentos como castração, amputação ou consultas.

Questionado sobre o que poderia ser feito para que haja uma mudança mais radical no cenário de superlotação dos abrigos do Distrito Federal, Wellington afirma que a castração dos animais é o meio mais prático e seguro para aliviar o grande número de filhotes em abrigos. “A pessoa não quer castrar o animal para ficar com um filhote, mas se esquece que não nasce só um, nascem vários. E depois, não sabendo o que fazer com os outros, acaba abandonando em frente aos abrigos”. 

O papel dos abrigos e dos protetores de animais. Crédito: Aline Gouveia e Samara Lim

Atualmente, é possível se voluntariar para o dia de banho dos cães e gatos do abrigo Fauna e Flora, que acontece no último domingo de cada mês. Além de doações de rações e valores monetários, o abrigo também recebe produtos de limpeza e lençóis antigos. 

No Distrito Federal não há nenhum abrigo público. Vanessa Negrini critica a ausência de apoio governamental, tanto na construção de espaços de acolhimento, quanto no apoio aos abrigos de iniciativa de voluntários. A especialista destaca ainda a diferença entre abrigos públicos e zoonoses. “Apesar de ser público, é algo bem diferente”, ressalta. A função dos Centros de Zoonoses é fiscalizar e tentar controlar doenças virais, a exemplo da raiva, leishmaniose, leptospirose e febre amarela. “A Zoonose só recolhe animais com doenças ou que estejam abandonados e causando algum tipo de transtorno no trânsito”, explica Vanessa.

Corrente do Bem Animal

Com quase quatro anos de história, oito amigas se uniram e passaram a resgatar e cuidar de animais, até que possam ser adotados por alguma família. “É um coração imenso, e um propósito também”, afirmou Shari Franci, uma das fundadoras do grupo. E, assim, funciona o trabalho das voluntárias, que recebem ao menos 30 pedidos de ajuda por mês, para além de suas obrigações e tarefas da vida pessoal. 

Com mais de 7 mil seguidores nas redes sociais, o grupo trabalha, essencialmente, com doações por parte de quem se sensibiliza com as histórias dos animais resgatados e cuidados por elas. “Não há ajuda qualquer de governo, de nada. Todo trabalho nosso é pautado em doação”, comentou Shari. 

Buscando sempre o melhor tratamento para os animais resgatados, o grupo conta com parceiros, que como forma de ajuda, disponibilizam seus serviços por uma quantia menor. Possibilitando a centralização do trabalho e, consequentemente, a melhoria dele.

Apesar da ajuda, os custos mensais do trabalho realizado continuam sendo uma das maiores dificuldades. “A dificuldade do grupo é conseguir doações. Conseguir realmente firmar nossos compromissos mensais com o lar temporário e com a clínica”, afirmou Shari. Segundo ela, os custos mensais do lar temporário e da clínica veterinária podem chegar a até R$ 8 mil. 

Com altos custos, surgem grandes responsabilidades, e por isso nem sempre elas conseguem atender todos os pedidos de ajuda que recebem. Então, em casos de animais de famílias carentes, que possuem local para manter o animal, mas não conseguem oferecer o tratamento necessário para ele, o grupo auxilia de forma “indireta”, oferecendo ajuda financeira.

Toda essa movimentação financeira torna-se uma grande preocupação para o grupo e também para os doadores, sejam eles mensais ou apenas esporádicos. Para isso, as voluntárias possuem até um espaço específico em seu perfil no Instagram para mostrar toda a movimentação monetária feita em suas ações. “Tudo para manter o trabalho mais transparente possível”. Mesmo com as dificuldades, o final feliz dos bichinhos com as adoções é sempre a grande recompensa e motivação para que elas continuem realizando o seu trabalho. 

O momento da adoção dos animais resgatados por elas é sempre rodeado de grandes expectativas por parte do grupo, dos seguidores e das novas famílias. Segundo Shari, em anos de história, foram poucos os animais que acabaram sendo devolvidos. Isso devido a toda a burocracia e o cuidado que há por parte do grupo com os animais, antes de enviá-los para novos lares.

Além de ser necessária a apresentação de documento válido de identificação, as adoções só são feitas a partir do preenchimento de um formulário de adoção, contando também com um acompanhamento constante do grupo durante os primeiros dias dos animais com seus novos tutores, garantindo uma vida saudável e cheia de amor para todos os adotados. “É sempre assim, mas com certeza o que nos motiva são os finais felizes, graças a Deus. Ao longo desse tempo, conseguimos ajudar muitos cãezinhos”.

A importância da adoção responsável e da castração. Crédito: Aline Gouveia e Samara Lim

A fome não espera 

Tudo começou há seis anos, quando Ihago Melo, que já tinha alguns animais na casa da sua mãe, comprou uma chácara nos arredores da Cidade Ocidental (GO). Com o novo lar e bastante espaço extra, Ihago deu vida ao sonho do Abrigo do Acolhimento. A organização independente começou com cerca de 40 cães e atualmente soma em torno de 208 animais, incluindo porcos e cabras. “A gente não quer passar disso. Eu acho que esse é o nosso limite para dar um pouquinho de conforto para eles. É o máximo que a gente consegue, porque tirar da rua para sofrer aqui não adianta”, diz. 

Ihago conta que o Abrigo do Acolhimento recebe cerca de 20 pedidos de resgate por dia, mas infelizmente além da superlotação de animais no abrigo, as rações estão cada vez mais caras e as adoções reduzidas, sem contar os casos em que o animalzinho é adotado e devolvido dias depois. Todos esses fatores impossibilitam que um novo animal receba cuidados e abrigo, então os coordenadores selecionam os casos de necessidade máxima para resgate. “Só que a gente não pode resgatar todos, então resgatamos os mais necessitados”, conta Ilhago. 

Assim como a maioria dos outros abrigos, a maior dificuldade que o projeto enfrenta hoje é o alto preço da ração. Ihago relata que por dia são gastos 2 sacos grandes de ração, totalizando uma verba diária de R $370,00. O Abrigo do Acolhimento não conta com nenhuma ajuda governamental e se mantém com as doações dos padrinhos, madrinhas e apoiadores. 

Mesmo com todos os fatores negativos, o fundador do abrigo alega que o maior combustível para esses animais é o amor. São gatos e cachorros que foram maltratados, abusados, espancados e que quando chegam no novo lar encontram dificuldade em se aproximar e confiar nos seres humanos, mas com o tempo e a dose certa de carinho, finalmente descobrem o que é amor. 

Como denunciar?  Crédito: Rafaela Alves

Paçoca encontrou um lar

Animado, obediente e esperto. É assim que a arquiteta Jacqueline Alves descreve o Paçoca, adotado por ela e o esposo no início de fevereiro deste ano. Além do lar e dos novos tutores, o filhote Paçoca agora faz companhia para o outro cachorro do casal, o Pudim. “A gente queria uma companhia durante o dia para o Pudim. No começo eles ainda estavam se adaptando e se conhecendo, mas eles se cumprimentaram muito bem”, lembra Jacqueline.

Paçoca é uma mistura de vira-lata com Golden Retriever, de aparência levemente peluda e  pelagem clara. Ele foi abandonado na porta do Abrigo do Acolhimento, na cidade Ocidental. Jacqueline conta que o antigo tutor ameaçou o dono do abrigo dizendo que se ele não recebesse o cachorro no espaço, o abandonaria na rua. 

Apesar de ter chegado e sido recepcionado com bastante alegria, o Paçoca demonstra medo em algumas situações, o que pode significar que ele sofria maus-tratos. “Ele chegou muito medroso e até hoje é. Se a gente fala em um tom mais alto, ele já fica muito murcho”, afirma Jacqueline.

Com o tempo, carinho e proteção dos novos tutores, Paçoca se sentirá mais confiante. Como ressalta a ativista Vanessa Negrini, os animais são sencientes, ou seja, sentem de maneira consciente. Assim como os humanos, eles têm necessidades emocionais e sofrem para além do âmbito físico com os abandonos. É por isso que os voluntários e protetores de animais frisam tanto acerca das castrações e das adoções responsáveis. Afinal, cuidar de um animal é uma responsabilidade e deve ser feita com amor

Jacqueline Alves e o esposo, Pedro Henrique, adotaram o Paçoca. Crédito: Arquivo Pessoal