Revista Traços é patrimônio cultural de Brasília

O Portal de Jornalismo Iesb entrevistou a presidente da Associação Traços de Comunicação e Cultura para entender como funciona a logística da revista Traços

Por: Brunna Feitosa, João Vitor Rapousa, Audrey R. Mendes e Rafael Magalhães

Postado em 06/11/2021

Hellen Cris Carvalho, presidente da Associação Traços de Comunicação e Cultura

A revista Traços é um patrimônio cultural de Brasília. Há 6 anos ela difunde a cultura em uma revista de ótima qualidade e de diagramação arrojada. O projeto vai além da difusão cultural. Os porta-vozes da cultura são as pernas da revista pelas entrequadras de Brasília até encontrar os compradores e, em troca, o valor arrecadado com a venda da revista ajuda a dar dignidade e esperança a eles. 

Para entender melhor como funciona a Revista Traços o Portal de Jornalismo do IESB entrevistou Hellen Cris, presidente da Associação Traços de Comunicação e Cultura.

Gostaria que você se apresentasse:

Eu me chamo Hellen Cris Carvalho Vaz, geralmente eu uso Hellen Cris Vaz porque meu nome é composto. Sou administradora de empresas por formação e tenho MBA em gestão de marketing. Eu venho de uma trajetória, principalmente, de trabalhos em órgãos públicos. De 2012 a 2017 eu cheguei a trabalhar na secretaria de Saúde, Casa Civil, secretaria de Governo, secretaria da Criança e secretaria de Cultura. Minha trajetória foi, principalmente, trabalhando em projetos de decretos, viabilizando processos licitatórios. Quando recebi o convite para fazer parte do projeto da Traços, vi que era para trabalhar com um time que eu tinha trabalhado na secretaria de Cultura, e logo me animei. 

Como começou sua trajetória na Traços? Você já começou como coordenadora social?

Eu estou no projeto Traços há cinco  anos, dos seis anos de projeto. Quatro desses cinco anos eu faço a coordenação social, no primeiro ano fiz coordenação institucional. Hoje eu respondo pela presidência da Associação Traços de Comunicação e Cultura e dentro do projeto da revista eu respondo pela coordenação social.

Me conte um pouco sobre a Traços. Desde a fundação, o propósito da revista:

O sonho de fazer a Traços nasceu há 16 anos atrás, 10 anos antes dela começar, quando dois dos três sócios pegaram a Hecho en BS, que é um street paper da Argentina, como inspiração e passaram a ter o conhecimento que existem street papers em mais de 120 cidades no mundo. Street papers são revistas vendidas por pessoas em situação de rua ou extrema vulnerabilidade financeira. O que diferencia um papel de rua do outro? Basicamente é o modelo do impresso. Aqui no Brasil nós temos cinco. O Ocas e O Trecheiro, em São Paulo, temos a Aurora de Rua, na Bahia, Boca de Rua, no Rio Grande do Sul, e a Traços, em Brasília, e agora também no Rio de Janeiro. Nós falamos somente sobre cultura, porque parte da equipe da Traços trabalhou lá atrás na implementação da lei de incentivo à cultura. Já tinham 10 anos que a Traços era sonhada, porém não existia uma fonte de financiamento capaz de criar uma revista que fosse colecionável e de alto padrão. Como trabalhamos com a implementação da lei de incentivo à cultura, vimos uma viabilidade para o projeto. Então, como os sócios têm empresas diversas, a Traços é um braço social do conglomerado de empresas deles. Eles fazem um aporte anual de recursos e o restante do ano tem financiamento de ordem da lei de incentivo à cultura ou de termo de fomento, que são emendas parlamentares diretamente direcionadas. Para que tudo isso existisse se criou uma instituição, uma ONG, que é a Associação Traços de Comunicação e Cultura, que eu respondo pela presidência.

A partir daí, em 2015, nós começamos nosso trabalho aqui em Brasília, e foi se expandindo até que no ano de 2021 foi para o Rio de Janeiro.

A Traços está agora lançando a sua edição nº 51. Lançamos a edição nº 50 como comemorativa, e tudo isso foi possível graças a um time que hoje é de 33 profissionais e mais 20 profissionais no Rio de Janeiro. Esse time editorial tem jornalistas, repórteres e fotógrafos. Temos no time social profissionais multidisciplinares qualificados, temos sanitaristas, redutores de danos, psicólogos com coach, também assistente social. No nosso administrativo temos um time de ponta. Na nossa comunicação, a gente tem um time de acompanhamento de redes, de produção de conteúdo online, acompanhamento das mídias de um modo geral, não só pela internet mas pelos outros meios de comunicação. A gente forma essa base toda na nossa sede que hoje fica na 208 Norte. Essa sede é o nosso principal ponto de apoio para que todo esse trabalho aconteça. 

Nossa revista já ganhou 13 prêmios nacionais e internacionais pela nossa diagramação e editoração. É uma revista muito especial no sentido de já ter destacado mais de 3.000 artistas do DF. Entre artistas, atividades culturais, fazedores culturais, de todas as classes que são reconhecidas pela Secretaria  de Cultura do DF, música, poesia, teatro, enfim, todas essas classificações já foram destacadas pela revista. No Rio de Janeiro  é bem similar, só que com um time editorial diferente. A revista traz os mesmos padrões e as mesmas características. Acabamos de lançar a terceira edição e fazer a troca de coletes após 3 meses e tem sido um sucesso replicar a metodologia que a gente utiliza na Traços Brasília em outros estados.

Nós conseguimos fazer alguns parceiros institucionais, um deles é a ONU(Organização das Nações Unidas) através da UNFPA (Fundo de População das Nações Unidas), com a Universidade de Brasília fornecendo estagiários de saúde coletiva, com o Ceub que nos fornece estagiários de psicologia, a UDF que também fornece estagiários de psicologia social e, principalmente, com a Fiocruz, que desenvolve conosco um estudo do grande autonomia do porta- voz. A bandeira da Traços é o ganho de autonomia e a independência financeira. Nós trabalhamos com o ganho financeiro e com o ganho de autonomia, basicamente isso.

Até hoje a Traços ajudou, aproximadamente, quantas pessoas?

 A Traços comemora no dia 4 de novembro 6 anos de projeto com mais de 390 pessoas atendidas por nós. Dessas, mais de 180 foram para empregos formais ou informais, 100% delas passaram a se alimentar com os próprios recursos e 100% passaram a ter cuidados com higiene pessoal e mais de 60% acessaram comunidades terapêuticas, fazendo tratamento para a drogadição. 

Como são escolhidos os porta-vozes da cultura? 

Para que esse porta-voz seja atendido por nós, um dos nossos pré requisitos é que ele seja vinculado a redes sócio assistenciais de alguma forma. O ser humano tem no social a garantia de direitos constitucionais, e nós entendemos que não conseguimos fornecer todos esses direitos constitucionais, pelo contrário, a gente trabalha no ganho de autonomia e geração de renda somente. Então para que tenhamos certeza que o porta-voz está sendo atendido, dentro da plenitude dos seus direitos, a gente entende que ele deve ser referenciado. Ele pode ser referenciado no Centro POP (Centro de Referência para Pessoas em Situação de Rua), em CRAS (explicar a sigla), em comunidades terapêuticas, em casas de passagem, albergues, em CAPS (explicar a sigla) ou em algum órgão público que a gente entenda que esse cidadão tenha acesso a essa cartilha de direitos.

Nós solicitamos que as pessoas sejam referenciadas em algum órgão de atendimento público para que ela possa receber o que ela tem de garantia de direito dentro da cartilha do cidadão. Como nós só fazemos a geração de renda, nós somos como uma ferramenta para toda a rede sócio assistencial. No momento em que o indivíduo quer sair da extrema miséria, da situação de rua e migrar para um outro status da sociedade, nós somos essa ferramenta utilizada por esses órgãos. Quando a pessoa vem por fora nós não deixamos de atender. Atendemos da mesma maneira, mas solicitamos que ele se encaminhe a um órgão de referência, fazendo o seu cadastramento para que ele possa ser acompanhado nas demais questões da vida que não estão envolvidas na geração de renda e no ganho de autonomia, que é onde atuamos principalmente.

Quando o porta-voz chega, como funciona a logística? O treinamento e as etapas pelas quais ele vai passando?

Ele tem que cumprir um conjunto de quesitos básicos para ser um porta-voz da cultura. Primeiro, ele ou ela precisa ser maior de 18 anos. Segundo, a pessoa não pode estar em alto nível de drogadição, ela tem que conseguir cumprir acordos porque somos baseados em um código de conduta, que vem escrito em todas as revistas. A terceira coisa é que essa pessoa não pode ter uma doença mental severa, ela precisa conseguir conversar sozinha. A quarta coisa é que ela não pode ter uma deficiência física severa, ela precisa se locomover sozinha, pode ser mancando, pode ser até com uma cadeira de rodas, mas ela precisa conseguir fazer isso sozinha, pegar as revistas e fazer a rota dela sozinha. O quinto vai ser estar referenciado em uma rede sócio assistencial. Cumprindo tudo isso, essa pessoa vai receber uma formação. O primeiro momento dessa formação a gente faz quando vamos até esses espaços ou quando essa pessoa chega aqui para a gente, que seria  a nossa primeira oficina. Nessa primeira oficina nós vamos dizer a eles o que é ser um porta-voz da cultura e como funciona a Traços. Os que desejarem vão preencher um formulário e vão conosco para a segunda oficina. Na segunda oficina que já acontece no nosso escritório, nós vamos ensinar o que é ser um porta-voz da cultura, o código de conduta, quais são as normas do projeto, horário de funcionamento, acompanhamentos obrigatórios, por que ele entra no que chamamos de jornada do porta-voz. Ele faz um acompanhamento de vida, um acompanhamento financeiro e passa por psicólogo. A gente vai trabalhando todo um planejamento de vida, para um final de jornada desse porta-voz dentro da Traços.

Aliado a segunda oficina, nós temos a implementação, que é nossa terceira oficina. Parte da implementação é um curso de vendas. Logo trabalhamos a preparação para as vendas, testamos vários cenários que ele possa enfrentar durante as vendas, e depois a gente vai junto com ele implementá-lo no local onde ele vai realizar as vendas. Essa oficina só termina quando ele realiza pelo menos a terceira venda de revista ou uma hora de acompanhamento no ponto de venda. Geralmente em uma hora eles vendem muito mais que 3 revistas. A partir daí ele recebe um colete de treinamento e vai receber 20 revistas gratuitas, divididas em duas remessas de 10, para começar a gerar esse ciclo de rendimento. Os 200 primeiros reais a gente dá para o porta-voz, não importa se ele vai retornar ou não. Lógico que a expectativa é que ele permaneça, se ele evadir ali não há nenhum tipo de débito dele com o projeto. A partir daí ele começa a comprar as revistas por 3 reais e revende a 10, sendo 7 reais o lucro dele. Quantos porcento ele vai reinvestir é uma escolha do porta-voz.

Fazendo um balanço de todos esses anos. Qual seria o impacto da revista na vida dessas pessoas?

De verdade, acho que o maior impacto da Traços, todos os dias, é na minha vida. Quando eu vejo as pessoas retomando sonhos, retomando carreiras, voltando ao mercado de trabalho e reencontrando a família. Quando você pergunta a um porta-voz o que ele ganha com a Traços ele nunca diz que é dinheiro, geralmente eles falam que ganharam dignidade, que ganharam visibilidade, que passaram a ser aceitos em locais em que antes eram expulsos. É um ganho de humanidade tão grande que para nós, que estamos aqui promovendo o projeto e vivenciando, ganhamos mais que todo mundo. Para mim quem mais ganhou foi eu.