Aprovação do Marco Temporal no STF pode comprometer demarcação de terras indígenas que aguardam regularização

A discussão gerou grande repercussão entre as mais de 255 terras indígenas que aguardam a regularização em todo o Brasil. Tese é inconstitucional e pode comprometer o direito dessas comunidades à posse de suas terras, garantido pela Constituição de 1988

Carol Silva dos Santos

Postado em 04/07/2025

Representantes dos povos indígenas reivindicam demarcação para evitar ação do garimpo e desmatamento ilegais / Foto: Carol Silva

A demarcação das terras indígenas no Brasil é um direito garantido pela Constituição Federal de 1988, no artigo 231, que reconhece os direitos originários dos povos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Essa demarcação, aguardada há anos pelas comunidades, torna-se cada vez mais urgente, especialmente diante das crescentes invasões ilegais em territórios indígenas, impulsionadas por atividades como o garimpo ilegal e o desmatamento. Quando essas terras não são devidamente protegidas, os povos indígenas enfrentam um risco constante de violência, com ataques de garimpeiros e outros invasores que buscam explorar os recursos naturais dessas regiões. Além de devastar o meio ambiente, essas práticas têm gerado confrontos violentos e, em muitos casos, resultando na morte de indígenas.

Em 2023, foi apresentada ao Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, a Lei do Marco Temporal (Lei nº 14.701/2023), que estabelece que os povos indígenas só podem ocupar as terras que já ocupavam ou disputavam em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição, ou aquelas que são historicamente pertencentes a eles. Por motivos de inconstitucionalidade e por contrariarem o interesse público, Lula vetou parcialmente a lei, mas os vetos foram quase integralmente derrubados pelo Congresso Nacional.

Impactos do Marco Temporal para as Comunidades Indígenas

A advogada constitucionalista Renata Oliveira Rossato, de 33 anos, afirma que essa lei é quase impossível de ser seguida corretamente devido a grandes falhas, já que o Marco Temporal deve se basear na localidade histórica de cada tribo. Ou seja, a demonstração de que aquela terra está culturalmente vinculada àquela comunidade: “Na ditadura militar, muitos indígenas foram deslocados de suas terras. Houve uma ação intencional do Estado para retirar os indígenas dessas localidades, pois queriam construir usinas, urbanizar, enfim. É uma questão também de genocídio indígena, vinculado à ditadura. Por isso, muitos povos, quando veio a Constituição de 88, não estavam mais em suas terras originais, mas em outras localidades.”

O relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) apontou que pelo menos 8.350 indígenas foram mortos durante a ditadura militar, entre os anos de 1964 e 1984. Esse genocídio representa um ataque contínuo contra os povos indígenas, que ainda lutam para preservar sua identidade, cultura e direitos territoriais. A consequência dessa luta pela terra vai além da disputa por território: ela envolve a preservação de seus rituais e do ambiente que eles habitam, incluindo as plantas e os animais daquele local. Deslocá-los de suas terras é privá-los de uma parte essencial de sua cultura e do vínculo profundo que mantêm com a natureza.

Atrasos na demarcação colocam comunidades indígenas em situação de vulnerabilidade / Foto: Carol Silva

Milena Mura, presidente da Organização das Mulheres Indígenas Mura do município de Autazes, do estado do Amazônia, e líder da aldeia Moiraí, diz que a falta de demarcação traz insegurança para a sua comunidade, “Bom, essa falta de demarcação nos deixa mais com medo, por assim dizer, das invasões. Já temos invasores no nosso território, mas ter esse retrocesso na questão da demarcação nos deixa com mais medo mesmo de não ter um território, de qualquer momento ser invadido por pessoas desconhecidas, de ver que nossas futuras gerações não vão ter mais onde viver, onde plantar, onde colher. E isso é um momento muito doloroso para nós, não ter nossos territórios demarcados.”

Esse histórico de deslocamento forçado é central para a crítica da Fundação Nacional do Índio (Funai) que solicitou medidas contra o STF, argumentando que a Lei viola os direitos dos povos indígenas. A instituição pediu que fossem levadas em conta circunstâncias reais, como os casos em que os povos indígenas foram deslocados de suas terras tradicionais e não tiveram recursos materiais ou legais para contestar essa remoção, o que resultou na confirmação de uma infração de seus direitos.

O presidente Lula quebrou o jejum de cinco anos sem demarcações, ao reconhecer 11 terras indígenas em 2024. No entanto, ainda existem 255 terras indígenas com o processo de demarcação iniciado, mas não concluído. Esse atraso contínuo coloca as comunidades indígenas em uma situação de vulnerabilidade, como destaca a advogada constitucionalista Renata Oliveira: “coloca em risco a garantia dos direitos constitucionais desses povos, inclusive o direito à vida, já que sabemos da violência constante que enfrentam. Além disso, essa situação coloca em risco também o meio ambiente, pois, quando esses territórios são ocupados por cidades e há uma organização da área, dificilmente haverá uma demarcação.”


A demarcação e a proteção ambiental
A tese do Marco Temporal, atualmente em decisão pelo STF, não afeta apenas os povos indígenas, mas também coloca em risco a preservação ambiental. A falta de proteção das terras indígenas expõe essas regiões à exploração ilegal, com ataques de garimpeiros e outros invasores em busca de recursos naturais. Além da devastação das terras, essas práticas contribuem significativamente para o aumento do desmatamento no Brasil.

Dança simbólica dos povos indígenas / Foto: Carol Silva

Pesquisadores da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, revelaram que, entre 1982 e 2016, houve uma “diminuição significativa” nas taxas de desmatamento em áreas de propriedade indígena. Territórios demarcados e fiscalizados apresentaram uma redução média de 66% no desmatamento. Assim, a demarcação e a fiscalização eficaz dessas terras têm se mostrado essenciais para a preservação ambiental nas comunidades indígenas.

No entanto, a fiscalização das terras indígenas é precária, devido à falta de investimentos por parte das autoridades. A ausência de manutenção impede a execução adequada dos serviços de proteção, deixando as comunidades vulneráveis. Além disso, os interesses de garimpeiros representam uma ameaça constante, pois buscam explorar os recursos naturais dessas regiões, comprometendo tanto as comunidades indígenas quanto o meio ambiente. Esse cenário revela também a atuação de organizações criminosas, que utilizam violência e corrupção, através de propinas, para controlar as terras e recursos.

A advogada constitucionalista Renata Oliveira destaca a importância da demarcação e fiscalização das terras indígenas para garantir a segurança dos povos originários: “A demora na demarcação e a impunidade para os crimes cometidos contra os indígenas indicam falhas estruturais no sistema jurídico e administrativo. Reformas legais funcionais poderiam acelerar os processos de demarcação e garantir maior segurança aos povos indígenas, até por meio de medidas legais. O ideal seria a criação de uma legislação contrária à proposta recentemente apresentada, a Lei 23, que está sendo discutida no STF em 2024.”

O líder do povo Xikrin, Shawan, relata que, embora a terra de seu povo já esteja oficialmente demarcada e sob proteção da Funai, ainda há motivos de preocupação. “A gente tem preocupação também com os fazendeiros e os garimpos que estão afetando nós. Por isso que hoje a gente cada vez mais faz a nossa união para manter e proteger nossos territórios”, afirma. A fala evidencia que, mesmo após a demarcação, a segurança dos territórios indígenas segue sendo um desafio constante, especialmente diante de pressões externas como o avanço do garimpo ilegal e da ocupação irregular.