Artistas periféricos ainda enfrentam obstáculos estruturais para conquistar espaço

Após avanços pontuais na representatividade negra no teatro e no audiovisual, a falta de investimento público, estigmas e racismo continuam limitando o acesso e a valorização de talentos nas favelas brasileiras.

Carol Silva dos Santos

Postado em 06/05/2025

Atriz Emilly Amaral atuando na série "Cidade de Deus - A luta não para"
Atriz Emilly Amaral (última à direita), atuando na série “Cidade de Deus – A luta não para”

No Brasil, o caminho até o reconhecimento artístico ainda é marcado por barreiras sociais e raciais profundas. Pessoas negras oriundas de favelas enfrentam inúmeros desafios para conquistar espaço no meio artístico, especialmente na atuação. A desigualdade de oportunidades, o racismo estrutural e a falta de representatividade tornam essa jornada ainda mais difícil.

Segundo dados levantados pela M&M Women to Watch, o número de protagonistas negros em novelas dobrou entre 2020 e 2024, em comparação com o período de 2000 a 2018, quando apenas 12 atores negros ocuparam esse papel. Essa disparidade também se reflete no cinema. De acordo com estudos do Grupo Multidisciplinar de Ações Afirmativas (Gemaa), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), a partir de dados da Agência Nacional do Cinema (Ancine), entre 1995 e 2018, apenas 2% dos filmes brasileiros de maior público foram dirigidos por homens negros.

O acesso à formação em artes cênicas, por exemplo, ainda é totalmente desigual, limitado por fatores econômicos e pela ausência de equipamentos culturais nas periferias. Enquanto jovens de classes mais privilegiadas contam com cursos, oficinas e redes de apoio, talentos das favelas enfrentam obstáculos para serem vistos e ouvidos. Muitos atores negros iniciaram suas trajetórias ainda na infância, em projetos teatrais construídos por ONGs e iniciativas sociais dentro de suas próprias comunidades. Esses espaços têm desempenhado um papel essencial ao incentivar a arte como caminho de futuro e esperança para crianças e jovens que sonham em transformar suas realidades por meio da cultura.

Um exemplo disso é a trajetória da atriz Emilly Amaral, criada na Cidade de Deus, no Rio de Janeiro. Ela foi descoberta em um projeto social chamado Instituto Arteiros e integrou o elenco da série A Cidade de Deus: A Luta Não Para. Emilly relata como foi o início da sua caminhada artística, ainda criança, dentro da própria comunidade:
“Quando eu tinha nove anos, encontrei no curso de teatro dos Arteiros uma forma de convencer minha mãe a me deixar passar mais tempo na rua com meus amigos. Na época em que o Instituto surgiu, as UPPs estavam sendo implantadas nas favelas, o que trouxe muita incerteza e restrições, não dava mais pra ficar na rua como antes. As pessoas desconfiavam do que estava por vir, e eu mesma fui impedida de brincar fora de casa por mais tempo. Foi nesse contexto que surgiu o curso de teatro infantil na Cidade de Deus, justamente na área onde o tráfico atua. Conversei com minha mãe, e ela permitiu que eu participasse.”

A importância do teatro na carreira dos atores

Ator Ricardo Fernandes na estreia da novela “Vale Tudo” / Foto: Arquivo pessoal

O teatro, nesse contexto, tem se mostrado uma porta de entrada fundamental para muitos artistas periféricos. Ele representa um espaço de expressão, liberdade e resistência, onde é possível discutir e questionar temas sociais urgentes. Além disso, o teatro é uma das formas de arte mais acessíveis dentro das comunidades, especialmente para jovens negros e periféricos.

O ator Ricardo Fernandes, criado também na Cidade de Deus, do Rio de Janeiro,  um dos fundadores do Instituto Arteiros, é outro exemplo dessa força cultural. Ele participou da produção do filme Cadê o Amarildo?, integrou o elenco da mesma série que Emilly Amaral e também se destacou em novelas da Globo. Ricardo relembra como tudo começou: “Meu interesse pela atuação começou porque sou sobrinho da fundadora do primeiro grupo de teatro da Cidade de Deus, o Rádio da Liberdade, criado há mais de 40 anos. Além disso, eu morava perto do Leandro Firmino, que interpretou A Pequena. Quando o filme Cidade de Deus foi gravado, eu ainda era criança e vi de perto toda a repercussão, jornalistas do mundo todo vinham entrevistá-los na nossa rua. Lembro de ver artistas como Seu Jorge passando por ali. Crescer nesse ambiente me influenciou muito.”

Apesar de ser uma importante via para o crescimento e reconhecimento de atores negros periféricos, o acesso ao teatro e ao audiovisual ainda é cercado de dificuldades. O ator e produtor cultural Gabriel Leal, de 31 anos, também do Rio de Janeiro, relata os desafios que enfrentou. Formado em Publicidade e protagonista do filme Vidro Fumê, ele conta que seu início foi marcado pela falta de oportunidades: ”Meu interesse pela atuação começou na adolescência não tinha grana para fazer um curso de teatro pago, porque na minha época, há uns 15, 16 anos, não tínhamos tanta oferta de curso de teatro, de atuação, de interpretação, com um precinho legal ou de graça. E foi mais ou menos com 14 anos que comecei a me interessar a fazer teatro numa ONG, que foi o primeiro curso que eu fiz na vida, e de lá eu nunca mais parei.”

Essa realidade não é isolada. Dados do IBGE revelam o quanto o acesso ao teatro ainda é limitado no Brasil: apenas 23,4% dos municípios brasileiros possuem teatros ou salas de espetáculo. Atualmente, o país conta com 3.422 espaços culturais desse tipo, um número considerado baixo diante da grande extensão territorial e diversidade populacional do Brasil. Esses dados reforçam o quanto é urgente o investimento em políticas públicas de cultura que descentralizem o acesso e valorizem os talentos nas periferias.

Ricardo Fernandes, um dos fundadores e atual diretor executivo do Instituto Arteiros, reforça a importância da presença do teatro na vida de crianças e jovens das periferias: “A gente começou há 15 anos atrás como um grupo de teatro para criança, entendendo que o teatro era uma ferramenta fundamental no desenvolvimento intelectual, no desenvolvimento crítico e artístico das crianças, começando ali como um complemento às atividades que as crianças tinham na escola e na própria família.”

Oportunidade para pretos periféricos 

Durante o primeiro semestre de 2022, dos 124 personagens principais e secundários presentes nas telenovelas inéditas da Rede Globo e da RecordTV, principais emissoras com produção de teledramaturgia do país, só 14% eram negros, de acordo com levantamento feito pela revista Veja. “Além da Ilusão” e “Quanto Mais Vida Melhor”, da Globo, tiveram os melhores números, com oito atores negros em seu elenco cada.

Esses números revelam que, apesar de avanços pontuais, a representatividade negra ainda é significativamente baixa no audiovisual brasileiro. Essa realidade reflete um sistema cultural historicamente excludente, que por muito tempo invisibilizou atores negros e suas narrativas, principalmente nos papéis de destaque.

Porém, o mundo vive mais regido por um mercado capitalista em constante transformação, nas diversidade passou a ser também uma demanda do público consumidor. Nos últimos anos, esse cenário tem pressionado as grandes produtoras reconhecidas a ampliar a representatividade racial em suas produções. A presença de mais protagonistas e personagens negros na televisão e no cinema tem se tornado cada vez mais visível, e não apenas por consciência social, mas também como resposta à exigência global por inclusão.

A atriz Emilly Amaral compartilha sua visão sobre esse movimento e concorda que as mudanças são impulsionadas, acima de tudo, por interesses econômicos:

Ator Ricardo Fernandes, atuando em novela de TV: importância de naturalizar essa presença nas telas e nos palcos, fazendo um apelo por mais espaços para artistas negros e periféricos / Foto: Arquivo pessoal

“Hoje em dia, tudo gira em torno do dinheiro e do capitalismo, é isso que movimenta as estruturas, que define o que é vendido e produzido. Se você não começa a se adequar às transformações que estão acontecendo no mundo, você acaba ficando para trás, e consequentemente, perde espaço e oportunidades.”

O ator Ricardo Fernandes também destaca que, apesar de lenta, a transformação no audiovisual brasileiro está em curso, e o país já pode ser considerado uma referência quando se fala em diversidade. “É uma mudança lenta, mas necessária. E até em comparação com outros países, algumas discussões que acontecem no Brasil são bastante avançadas, como as questões de gênero e raça. A gente tem reflexões profundas aqui, mas, por falarmos português e nos isolarmos um pouco do restante do mundo, muitas vezes não percebemos o quanto avançamos.”

Ele ainda reforça a importância de naturalizar essa presença nas telas e nos palcos, fazendo um apelo por mais espaços para artistas negros e periféricos: “A população está começando a se habituar com essas mudanças. A ideia é que, com o tempo, isso deixe de ser um grande destaque e se torne algo natural. A gente quer espaço, porque precisamos estar onde quisermos estar e não apenas onde dizem que devemos estar. É nisso que acreditamos!”

Dificuldades de uma atriz negra e periférica ter sucesso no cenário brasileiro

O olhar da sociedade sobre atrizes negras periféricas ainda carrega estigmas e estereótipos recorrentes: elas são frequentemente escaladas para papeis de mulheres de traficantes, figuras hipersexualizadas ou da “pobre favelada” que não tem nada. Essa limitação de personagens é reflexo de um imaginário social racista e reducionista, que insiste em restringir essas atrizes a papeis marcados pela marginalização. A chamada “grande evolução”  na representatividade veio apenas após muita luta desses artistas negras, que enfrentaram barreiras para romper com esses rótulos e conquistar espaços de protagonismo, espaços que sempre foram seus por direito.

Um exemplo marcante dessa trajetória de resistência é o trabalho da atriz Emilly Amaral. Todos os dias, ela enfrenta desafios para ocupar seu espaço no mundo artístico. Ela ainda compartilha como essa luta se manifesta, especialmente para mulheres negras periféricas: “Quando você é mulher e quando você é uma mulher negra ainda as pessoas querem te colocar dentro de uma caixinha dentro de um estereótipo. É uma favelada estereotipada da forma que eles enxergam nós mulheres que moramos dentro da comunidade. É fazer papel de mulher de bandido, e não uma menina que tem um vocabulário acadêmico, é sempre fazer uma personagem que precisa mostrar o tempo todo o corpo de uma forma sexualizada.”

Atriz Emilly Amaral na estreia da novela Vale Tudo: “Sempre preciso provar para as pessoas o meu talento”.


Durante anos, infelizmente, esse foi o papel imposto a muitas atrizes negras periféricas: o de personagens limitadas, ignorando suas capacidades intelectuais, seus estudos e vocabulário acadêmico. Esse apagamento estrutural as colocava, constantemente, em um lugar de inferioridade, como se precisassem provar o tempo todo que seu trabalho é tão competente e legítimo quanto o de uma atriz branca ou de um ator homem. Emilly Amaral relembra um passado recente em que essa desconfiança era (e ainda é) recorrente: “Já enfrentei vários obstáculos, mas quando eu falo o que eu faço, as pessoas meio que ficam duvidosas, com o pé atrás. E eu sempre preciso provar para as pessoas o meu talento, é sempre preciso fazer para que as pessoas vejam o meu talento e que elas não duvidem do que eu, de fato, posso e consigo fazer.”

Esse cenário de constante desvalorização não apenas mina a autoestima dessas artistas, como também destroem carreiras de atrizes talentosas. A ausência de oportunidades concretas e de representatividade justa leva à invisibilidade de quem deveria estar no centro da cena: mulheres negras, periféricas, protagonistas de suas histórias. Emilly conclui com uma fala que sintetiza o sentimento de muitas: “ Às vezes a gente precisa, por necessidade, aceitar certos trabalhos, porque senão a gente não sobrevive nessa sociedade.”


Falta de investimento do Governo Federal na cultura brasileira

De acordo com dados apurados pelo Portal Gov, em um período de 10 anos foram investidos cerca de R$300 milhões no teatro por meio da Lei Rouanet. À primeira vista, esse montante pode parecer significativo. No entanto, na prática, percebe-se que esse investimento não tem gerado impactos proporcionais nas comunidades periféricas, especialmente no que diz respeito ao acesso de pessoas negras a oportunidades no setor cultural.

A realidade é que, apesar do volume investido, a maioria dos projetos voltados à formação artística e à promoção do teatro em territórios periféricos é sustentada por iniciativas da própria comunidade. São ONGs e projetos sociais que, em sua grande parte, atuam sem apoio direto do governo, sobrevivendo com poucos recursos, doações ou editais pontuais. Essa ausência de um investimento estruturado e direcionado evidencia o descaso histórico com a democratização do acesso à cultura.

Essa negligência institucional torna ainda mais significativa a atuação de artistas que, como Gabriel Leal, trilham seus caminhos na base da resistência e da coletividade. Ele relembra as dificuldades enfrentadas no início de sua trajetória e reforça a importância de tornar a formação artística acessível para todos: “A gente precisa ter formações de qualidade e acessíveis para essas pessoas, gratuitas. Eu, graças a Deus, ao longo da vida tive acesso a algumas ONGs, cursos que eram gratuitos. E esses cursos e essas experiências formaram o ator que eu sou. E acho que é muito importante que isso seja democratizado.”

Nas periferias, o cenário é de resistência e mobilização. O esforço coletivo de quem vive nesses territórios busca, dia após dia, criar novas possibilidades. Essas iniciativas mantêm viva a esperança, abrindo novas possibilidades e afastando crianças e jovens dos ciclos de violência.

Ator Gabriel Leal destaca a importância de tornar a formação artística acessível para todos | Foto: Arquivo pessoal

O acesso à educação e à arte, especialmente ao teatro e ao audiovisual,  representa uma via concreta de transformação social. Por isso, é essencial que o poder público amplie os investimentos em projetos sociais que já demonstram seu valor. Essas iniciativas não apenas revelam talentos como também oferecem novas perspectivas, impactando positivamente a vida de muitas famílias.

A atriz Emilly Amaral reforça que essa caminhada é marcada por desafios, mas também por resistência e esperança. Ela destaca como a persistência é essencial para quem sonha com um espaço no mundo artístico; “Ser artista, hoje em dia, em qualquer lugar do mundo, é muito difícil. Mas no Brasil, a gente sabe que tem pontos que acabam dificultando muito mais. Principalmente quando são pessoas negras, periféricas, É muito difícil, realmente, mas não desiste, porque uma hora as coisas começam a acontecer. Porque assim como tem muitas pessoas que duvidam do nosso potencial, que duvidam do nosso talento, também existem muitas pessoas que acreditam nele,e pessoas que vão estar dispostas a ajudar a gente a chegar em determinados lugares, a alcançar determinadas coisas.”