Entre páginas e passos, Leandra Neiva percorre Brasília como porta voz da cultura da revista Traços

Ex-residente de casa de acolhimento é uma dentre as mais de mil pessoas que já foram empregadas e amparadas pelo projeto

Débora Sobreira Rezende

Postado em 18/06/2025

Quem transita por cafés, lanchonetes e restaurantes nos diferentes cantos de Brasília pode ter sido abordado por um vendedor de revistas, geralmente trajado com um colete e um sorriso no rosto. É por meio da divulgação mesa-a-mesa, quadra-a-quadra, que os chamados porta-vozes da cultura comercializam a revista Traços, impresso sem fins lucrativos com conteúdo voltado à divulgação da cena cultural da capital. 

Criada em 2015, a revista Traços teve berço em Brasília e hoje ganhou asas também no Rio de Janeiro. O veículo se estende para além das páginas: é um projeto de cunho social, empregando pessoas em situação de vulnerabilidade como vendedores ambulantes.

Após um treinamento, os profissionais então recebem os coletes e 20 edições da revista para venda. A iniciativa também oferece tratamentos de saúde e acompanhamento psicossocial para os porta-vozes, através de parceria com programas do SUS e do SUAS (Sistema Único de Assistência Social).

Leandra Neiva, assim como muitos de seus colegas, teve sua relação com arte, cultura e educação ressignificada a partir da iniciativa. Ela, junto a duas outras companheiras de trabalho, foi o foco de um ensaio fotográfico para a edição especial de 10 anos da revista e personagem de um perfil que compôs o volume. Sete anos após ter sua vida mudada pelo projeto, ela reflete sobre quem era antes e quem se tornou depois de virar porta voz da cultura.

Leandra ganhou espaço e chegou a ser perfilada dentro da revista | Foto: Acervo pessoal

O que a levou a iniciar seu trabalho com a Traços?

Morava em Arinos, uma área rural de Minas Gerais, que me trazia tempos muito difíceis, principalmente por conta de problemas hídricos. Dali, parti para Brasília em 2017 em busca de emprego, na ilusão de que o curso técnico em Agropecuária iria trazer mais oportunidades. Não fui bem sucedida devido à idade e falta de experiência no currículo – confesso que achei o mundo agro muito machista também. Tive que ficar hospedada em uma casa de acolhimento, “Casa de Acolhimento Casa Flôr”, que só hospeda mulheres.

E como se deu sua transformação em “porta voz da cultura”?

Já muito bem acolhida pelos servidores da Casa Flôr, tive a oportunidade de conseguir carteira de habilitação e fazer cursos, mas só conseguia trabalho de panfletagem. O único projeto que me gerou renda e me permitiu voltar a sonhar foi a Revista Traços. A equipe da revista apareceu na Casa certa vez para captar pessoas para o projeto. Nisso, me permiti conhecer e participar, e foi a melhor coisa que fiz.

O meu acolhimento já estava terminando, faltavam apenas 4 dias para eu ser desligada. Comecei a vender as revistas até juntar o dinheiro para começar minha vida com independência. Em quatro dias de venda, aluguei um quarto com banheiro, com entrada independente e mobiliado; comprei fogão, botijão, televisão, ventilador, e me acomodei bem até os dias atuais. Pude fazer benfeitorias na área rural, onde moravam meu filho, nora e duas netinhas.

Quando entendi que a Traços é muito além de geração de renda, fiquei apaixonada. É interação social, é cultura, coletividade e transformação social e econômica. A Traços é muito mais do que possamos entender.

Sabemos que os vendedores da Traços podem enfrentar estigmas e preconceito durante sua atividade. Para você, o trabalho sempre foi agradável?

Nem sempre. Assim que entrei, ainda não conhecia tão bem o projeto da Traços. No segundo dia, tive uma situação desagradável com um senhor: chegando em um estabelecimento, abordei uma mesa cheia de homens bebendo, e um deles respondeu: “Não, não vou comprar revista para sustentar vagabundo”. Aquilo foi uma flechada no meu coração; olhei para ele, respirei fundo e respondi: “Me desculpe, senhor, não sabia que não gostava de cultura”. No que me virei para sair, com os amigos dele sorrindo, constrangidos, comecei a lacrimejar, me doeu muito.

No dia seguinte, chegando na Traços e, ainda chorando, pedi para sair, mas a equipe me convenceu a continuar no projeto. Me contaram que o trabalho é envolvido com dependentes químicos, que muitos têm recaídas, usavam o lucro da revista para comprar drogas… e que alguns compradores da revista já tinham presenciado essas situações. E que bom que me convenceram, pois voltei decidida a quebrar esse estigma.

A Traços é vendida por quem está em vulnerabilidade, mas isso não significa que qualquer pessoa vulnerável se tornará alcoólatra, dependente.

Qual a melhor coisa que ser vendedora da revista te proporciona?

Através da Traços, tive a oportunidade de ir pela primeira vez em shows, teatros e conheci muitos artistas e feitores culturais do DF e também de outros estados. As melhores coisas são as trocas, interações e muitas amizades que venho construindo ao longo da jornada. 

Muito contribui para minha permanência os clientes, amores que venho construindo; me tratam com muito respeito, afeto e carinho. Apoiam e acreditam no projeto, em todas as transformações que ele é capaz de proporcionar. Essas pessoas me empoderam e me fazem acreditar que nunca estou sozinha, que posso contar com eles. Amo todos os meus clientes, “amores”, como os denominei.

Qual a importância de iniciativas como a da Traços, não só para sua vida mas também para a população?

É de fundamental importância que existam mais projetos como esse; o que é muito fácil e para uma parcela da sociedade, não é tão simples para uma maioria da mesma. Inclusive sobre a visão de vida, clareza ampla de que podemos ser e estar onde quisermos estar. Que também somos importantes para a construção de pessoas melhores e, quem sabe, de um mundo melhor.